A arte numa conversa apaixonada

Sobre os mármores desta cidade, a conversa já idosa que mantinha com Maria fazia-se revigorante. O sol estonteante e o barulho dos tambores vazios e aquecidos pelos muitos candongueiros, ousados, num azul e branco cheio de sal das memórias duma cidade embebida no verso duma música só, pouco ou nada, distraiam-nos. Tínhamos já percorrido instantes demorados de fidelidade com o esfarelado asfalto. Ela, chiquérrima como sempre, impedia-me de chamar um táxi qualquer. Queria era experimentar a boleia da poeira e os amplexos do sol depois de quase dez anos fora da órbita angolana.
— Vês como é curioso, não há definição fixa para a arte.
— Lá vens tu, mais uma vez! Acho que seria impor limitações, se tivesse — respondi sem qualquer intenção de prolongar.
Um sorriso miúdo seu, perdido entre o que pensava e o que acabara de ouvir, deve ter-lhe dado pouco espaço de manobra. Agarrou-me na camisa, pedindo, logo depois, que nos sentássemos no banco avistado vazio. Naquele banco, moravam as histórias análogas ao local, e os maltratos do tempo ainda lhe possuíam o carácter, e, nos arredores, povoados de vidas descansavam a minguar boas instâncias, como os miúdos que com os sonhos e anseios desabrigados viram, na rua, a porta da revolução. Agora chamado pelo facto de Maria, ligada de corpo e alma ao mundo da contabilidade, vir com o assunto da arte logo num dia esquentado pelo sol abrasador e por cima da inoportuna posição psico-geográfica.
— Acho… Se lhe quiséssemos fixar uma definição, estaríamos a seleccionar os erros para nunca aproveitá-la melhor. As definições tendem a criar fronteiras lógicas, e arte, às vezes, é completamente ilógica — continuei inocente.
Uma figueira, cansada de tanto beber o silêncio da rua, doava-nos a sombra das suas asas folheadas e, com um verde desabrigado, contava-nos a história do Miramar. Ela parecia nunca ter desistido de viver ali. Defronte ao Cemitério do Alto das Cruzes, repousava enraizada.
— Maria, acrescento parafraseando Ferreira Gullar: “A arte é muitas coisas…”
— Como assim?
— Deixa-me terminar, maluca! — Avancei. A intimidade da nossa história convida termos mais ousados. Só a sombra fabricada por aquela moribunda figueira é que não nos permitia alcançar os berros das nossas almas, embora, poucas vezes, nos deixássemos abalar pelas portas dos momentos. — Gullar continuou… “uma das coisas que a arte é, parece, é uma transformação simbólica do mundo.”
Maria olhava-me distante de si e, mais para o lado da estranheza, demonstrava-o através da expressão daquele seu rosto angelical desfeito pelas trancas que o arrombavam a suavidade e um movimento atrapalhado dos braços em direcção a mim. Empurrou-me para o lado de cá da conversa, distante do seu corpo que, oportuno, lembrava com longa fidelidade a essência de arte — curvo — e, embora sentada, espelhava a santidade do Mussulo num manifesto abstracto e emanava com a ponta dos olhos as mesmas poesias que nas Quedas beijam, amiúde, todo Kalandula do meu corpo. Desgovernada por sei lá o quê, ela continuava inquieta e gritou com leveza na voz…
— Os mortos que ali descansam devem proporcionar uma bela obra de arte! — aferiu, roubando, dos discursos de Quintino Moreira, todas as ironias para si; referindo-se ao repouso absoluto dos inquilinos do Alto das Cruzes.
— A canção da morte é uma autêntica obra de arte. Na arte, não há inexistência. Ou, como também disse Ferreira Gullar, “A arte existe porque a vida não basta!” — Insisti.
Olhou-me, novamente, como se estivesse em cálculos profundos e…
— E se não há inexistência n’arte afinal qual é o trabalho do artista?
— Não vês?
— Fala só. Sou apenas uma contabilista!
— Também podemos olhar para a Contabilidade, essencialmente, como uma maneira artística de registrar transacções…
— Fala ‘mbora só, e deixemos para lá a contabilidade antes que comeces, num monólogo profundo, a falar das tuas Químicas.
— Diz-se que o artista é o cultor da arte… e penso que: o artista cria um mundo outro ― mais bonito ou mais intenso ou mais significativo ou mais ordenado ― por cima da realidade imediata. Esse mundo outro que o artista cria ou inventa nasce de sua cultura, de sua experiência de vida, das ideias que ele tem na cabeça, enfim, de sua visão do mundo.
— E então, senhor Kaz, o que vês, ou melhor, qual é a tua visão sobre mim?
Sem espaço e tempo para me desenrolar, olhei-a nos olhos: brilhavam como as águas do Kwanza, seu cabelo, crespo, traziam para cá a Mayombe, e as curvas do seu corpo levavam-me às inúmeras lombas e rotundas da estrada de Catete. Calado, limitei-me a desfrutar das boas sensações que me dava a sua presença até ser desperto pela voz penetrante e dispersa por aquela boca arrumada em lábios adornados pela cor de um batom vermelho excitante…
— Então?
Respondi ainda desligado:
— Estou comigo a pensar na variedade de meios por que se realizam a arte, seja as muitas linguagens de manifestação artística.
— E como é que isso responde a minha pergunta?
— A Serra-da-Leba é uma autêntica obra de arte, manifestada pela linguagem arquitectónica. Ela não passa uma mensagem concreta…
— E…?
— E isso levou-me ao teu corpo cujas curvas transmitem uma determinada experiência abstracta tal qual a Serra-da-Leba.
Ela assustou-se e, ainda desorientada pelo espanto ou pelo facto de, talvez, não conhecer a relação entre o seu corpo e os tantos ziguezagues da Serra-da-Leba, convidou-me, sem expelir uma palavra sequer, a olhar em frente, onde dançavam sob o sol, agora miúdo, os muitos transeuntes da vida. […] Continuámos. O caminho da conversa se fez leve depois do seu sorriso tactear a instância, e ela cobriu o olhar pregueando a testa como se fosse incomodada por algo…
— Vamos ler as narrativas do mar, daqui são apenas alguns passos de distância, um camaleão chegaria em dez minutos! — Convidei-a.
— Estou aqui a pensar também… a arte é mesmo “muitas coisas”!
— Pois é! Mas vamos antes que o sol desactiva as suas forças e apague a vida da tarde!
Levantou-se. Esbelta como uma Palanca, marcou o primeiro passo agarrando-me, nas mãos e, já em pé, paralelo a mim, cingiu seu braço sobre a parte superior do meu quadril e avançámos. Olhou para atrás e, com ironia, soltou…
— É possível que esta nossa conversa se transforme numa obra de arte! — Sorriu. Acompanhei-a na cadência daquele sorriso eloquente e, com os passos medidos, disse-lhe de imediato:
— Não se transformará, é uma obra de arte. Afinal, a arte é “muitas coisas”!