A ascensão do ser: uma leitura filosófico-analítica em “as idades do vento” de Jaime Munguambe

Toda a crítica literária encerra uma dimensão filosófico-analítica. Os textos literários podem ser lidos de diferentes maneiras, contudo acreditamos que cada texto impõe ao transdutor (críticos ou analistas) um tipo de leitura que é condicionada pelo ângulo que o melhor favorece. Tal imposição pode ilibar, de certas exigências, o indivíduo que materializa objectivamente as suas ideias através do texto literário. Decerto, não se trata de ilibar o autor, e sim do melhor ângulo de abordagem em sede da metapoesia que o poeta apresenta.

Alguém nos poderá dizer por que caminho passará o surrealismo até a sua dissolução? Obviamente que não! Porque o surrealismo irrompe barreiras, se apruma e surge em vários pontos com outras tonalidades. As realidades que a modernidade nos prega são completamente aterradoras; no entanto, estas conseguem camuflar-se e afigurar-se-nos como normalidades. São os artistas quem as desvendam melhor, destruindo-as imageticamente para que se nos revelem tal como são. Surrealismo é isto: reconstrução insólita ou mesmo destruição de factos concretos a partir duma realidade objectiva. Tal surrealismo impregna-se no «aparente» que move a poesia de Jaime Munguambe, poeta moçambicano que ora glosamos, inquieto, por isso – filopoeta – aborda com olhos de lince «os condicionalismos humanos», denunciando-os implicitamente a partir do título – «As idades do Vento» – em que o lexema «idade» nos remete para o «tempo» e o «vento» – cristianizando – o sopro e o influxo espiritual de origem celeste – para a «vida».

A simbologia do «vento», fruto da sua natureza convulsiva, remete-nos, por analogia, àquelas situações da vida marcada por uma certa instabilidade, insegurança ou inconstância, marcas que podem ser encontradas em «As idades do vento» em que o Ser em Movimento, construindo-se de dentro para fora, é de uma essência indeterminada «Porque (…) vive um exílio interior», como diria Luís Carlos Patraquim, prefaciador da obra. Tal inquietude advém da gestão das coisas externas. Há um mundo exterior que é assimilado por cada um de forma diferente. Poder-se-ia referir, como mandam as teorias, sobre vários sujeitos poéticos, mas não é assim que se nos afigura o poemário de Jaime Munguambe, porquanto há uma evidente relação de macrotextualidade entre o título e os textos que compõem «As idades do Vento» em que os últimos se subordinam semanticamente àquele, o que nos leva a abordar um único ser ou sujeito poético, múltiplo no seu modus operandi. Ademais, cada poema reflecte um estado de espírito. Trata-se de um ser inconstante que,

e em movimentos sigilosos, abana as paredes do mundo (pág. 18). (…) No entanto, parece, a dada altura, ter conseguido domesticar os sentimentos adversos como a solidão que

é apenas uma criança

ao colo da noite (pág. 20).

O Ser material é fruto do carácter introspectivo do texto lírico, um elemento de pouca importância. Tudo, na dimensão lírica, se resume no «Ser» voltado para si mesmo. O sintagma «o ser» pressupõe «movimento» ou «movimentos». Dizem os teóricos que o tempo lírico é estático, o que pouco se diz é que ocorrem movimentos constantes nesse universo psíquico de construção lírica. O sujeito movimenta-se ou é movimentado, partindo de uma zona silenciosa para enfrentar outras formas de silêncio, saindo de um estado de pura acalmia para outro estado de auto-observação, e migra

…por dentro da gruta (pág.48),

que, se tivermos em conta o conceito clássico de «metáfora», defendido pelo mestre grego, Aristóteles ([s/d.]: 332), como a transposição do nome de uma coisa para outra (…) por via de analogia, corresponderia (a gruta) e corresponde ao Ser movimentando-se psiquicamente em toda a sua dimensão,

nos buracos abertos pela ciência do silêncio (pág.48),

Jaime Munguambe

em que o sintagma «ciência do silêncio» nos remeteria à já referida gestão dos conteúdos que vão surgindo ou eventualmente a um estado de maturação do Ser.

No âmbito da gnosiologia materialista, pode não ser lógico falar-se sobre o Ser Infinito. Porém, a dialética levar-nos-ia a uma abordagem metafisica na qual a infinidade do Ser é racionalmente possível. Porque o Ser não é apenas feito de matéria. O movimento do ser continua mesmo depois da morte física: religiosos e poetas metafísicos comungariam.

O Ser é uma entidade cuja plenitude é condicionada essencialmente por factores biológicos e culturais. O sujeito chama-nos mais uma vez a contemplar o seu crescimento. Agora move-se com maior agilidade e mestria, podendo arrastar o corpo, porque tem

…a magia do movimento (pág.60).

Os atributos ou as qualidades de um ser são aspectos meramente transitivos. Nem todos os seres têm consciência de sua existência. A maior parte deles existem na sua interacção com o ser humano. Drummond de Andrade já se questionava como seria o lugar quando ninguém passava por ele. Acrescentamos: o lugar é quando somos, e as coisas existem porque existimos.

Os objectos podem nos situar no espaço e no tempo, dando-nos indicações sobre o nosso estado etário e psicossocial. O Ser cresce com os objectos. Nós restringimos a noção de Ser. O Ser move-se mentalmente e será, dentro da filosofia que defendemos, aquele que tem noção da sua existência.

Reparo na mocidade da janela,

as cortinas vestem luzes sem alma

e a solidez da madeira

camufla os pedaços das manhãs em crescimento

o meu corpo está estendido no tempo (pág.60)

Em termos metafísicos, a ascensão do Ser dá-se efetivamente quando a matéria e a forma aprendem a viver isoladamente. Em sede disto, há várias matérias sobre projeção astral. Essa dissociação é uma arte que não está à disposição de seres vulgares. Todo o ser que não se projecta é vulgar. A projecção envolve crenças e atitudes extraordinárias.

Espreito-me devagar para ver se ainda existo no mundo (pág.61)

Fico ao lado de mim

(…)

Ensino a carne o movimento do espírito (pág.62)

Há vários motivos filosóficos por se descobrir na poesia de Jaime, a ataraxia – paz de espírito – é uma atitude frustrada de gente preguiçosa. Em vista disso, não é nosso desígnio esgotar as quase infinitas possibilidades de se alcançar o Ser que se constrói com palavras.