A DOMADORA DO TEMPO

A manhã nascia lenta sob a fresta entre a parede e o teto do quarto, era a hora em que a lua e o sol cumprimentavam-se cordialmente, um terminando o turno e o outro a entrar com o seu esplendor para iluminar a vida de alguns, queimar a de outros e suar os corpos da maioria dos mortais. Era a hora exacta para o relógio biológico da Intumba tic-taquear. Nem uma hora a mais, nem um minuto a menos. Espreguiçando os braços, foi abrindo lentamente os olhos e despertando os cinco sentidos um de cada vez e cada um na sua vez.

Intumba já foi a planilha e o plano em pessoa. Organizava o tempo segundo a sua própria vontade e querer. Os seus dias eram de lassidão, de uma preguiça organizada, sem o stress da correria desenfreada do resto do mundo. Para ela o tempo não tinha asas ou era esquivo. Ela pegava-o na mão e manuseava como queria. Era preciso estruturar sempre o que estava feito, o que estava a ser feito e o que seria feito. De manhã, depois de acordar, olhava para a agenda. Sem antes escovar os dentes, sem o banho matinal, já tinha o esquema do dia todo organizado na cabeça. Após o banho, uma hora exacta era dedicada ao matabicho, com a roupa passada a ferro em cima da cama. Organizava a pasta de trabalho, relatórios, agendas, computador, documentos, envelopes, cada um no seu devido lugar. Aliás, anos atrás, havia comprado um organizador de pastas que tornava tudo mais fácil de ser identificado.

Nunca tinha pressa, também nunca acelerara a vida. Tudo acontecia dentro dos seus prazos. Saia para a rua como se o mundo coubesse nas tabelas e gráficos do Excel. Cada pessoa era uma fórmula, feitas bem as contas encaixava-as numa linha, numa célula. Pegava o jornal todos os dias no mesmo ardina, odiava o facto de o autocarro chegar sem uma hora certa. Ela, no entanto estava sempre à espera às 06h30. Bando de desorganizados!, era a reclamação diária, que vinha logo a seguir ao suspiro de resignação. Fugia do inseguro, o imprevisível, o improvisado. Era como se tivesse alergias ao caos. No mundo cada um tinha o seu quadrado e cabia a todos cumprir com as suas funções.

A memória do tempo da sua terra natal, era uma dúvida entre a fantasia e a realidade. Era ténue a linha entre o inventado pela saudade do tempo e o que era de facto. Mas lembrava que as pessoas viviam do improviso e impreciso, sem compromisso algum com o tempo. As coisas eram feitas no momento sem a antecipação e redução do que poderia dar errado. A vida era tão improvisada que as crias não nasciam no tempo previsto. Quem devia nascer no cacimbo esperava pelo tempo de chuva para gritar a sua vinda ao mundo. Quem devia nascer na época chuvosa se antecipava aos remoinhos de Agosto para conhecer o mundo. As crianças cresciam sem a noção da grandiosidade do valor do tempo e sem saberem como o domar. Intumba, desde a meninice, guardava o anseio de controlar o tempo, viveu no ventre da mãe durante exactos nove meses, saiu como previsto pelo médico e a sua vida continuou assim até a fase adulta. Sem imprevistos, detalhadamente planificada, com pirâmides de produtividade.


Conheceu Luanda aos 5 anos de idade, com a mãe e a irmã. Após um período conturbado entre refúgios e refugiados, que passou como um relâmpago, acabaram por chegar ao destino, Lubango, onde se estabeleceriam a fim de que ela e a irmã pudessem estudar e a mãe trabalhar. Intumba odiou o caos, a falta de métodos, o dar um jeito das pessoas em Luanda. A mãe, por sua vez, gostava da multidão apertada, feito sardinha enlatada. Aos olhos de Itumba, Luanda parecia rebentar pelas costuras, com gente por toda a parte com a esperança do recomeço e munidos apenas da força dos braços e a expectativa de dias de bonança.


No Lubango Intumba se reencontrou, parecia que as pessoas dominavam o tempo, assim como ela, com réguas, esquadros e disciplina, viviam a vida cada um no seu quadrado enrijecido pelos fatos sociais; saias vincadas, lisas pelo ferro de engomar; saltos altos e pastas a executivo. Intumba inalou o ar das regras, do acordar cedo, do não usar a chuva como desculpas e de ter hábitos definidos. Casa, escola, escola, casa. A letra dentro da linha dos cadernos, a data do lado direito e a disciplina do lado esquerdo. Os textos com os mesmos parágrafos que os da professora no quadro negro da sala. Intumba cresceu a chamar senhora professora e durante a vida até mesmo fora da escola assim procedeu com todos os seus professores.


Tornou-se uma adolescente regrada, com o tempo já domado e à sua mercê. Com os cadernos organizados com diferentes cores. O azul para a matéria. O vermelho para os títulos e subtítulos e a preto para as notas de rodapé. A regra continuava a mesma: casa, escola, escola, casa. Sem aventuras ou birras da idade, sem a imposição da mãe. Para ela a vida não tinha os seus próprios contornos, ela mandava e a vida obedecia. Tinha objectivos, planos traçados para curto, médio e longo prazos.


Aos 17 anos conseguiu o primeiro emprego, como professora primária, sentiu-se como o peixe no seu habitat natural. Agora podia implementar as suas regras e rigidez aos seus alunos. O mundo era sentar-se ergonomicamente, a bata limpa e engomada e com vincos, os sapatos com meias limpas sem odores nauseabundos, cabelo trançado para as meninas e penteado para os meninos. “Bom dia, senhora professora” causava-lhe orgulho e orgasmo, era uma autoridade e exemplo para aqueles miúdos. Assim como foi ensinada: a data do lado direito, a disciplina do lado esquerdo. Cada palavra na sua linha, cada parágrafo com o seu espaço. “Até amanhã, senhora professora” era a certeza de um dia de trabalho extremamente produtivo.


Os amores eram com a mesma disciplina que a sua vida: domingo cinema, sábado sexo, dias de semana mensagem de bom dia às 08h00, telefonema às 19h00, uma hora exacta de conversa. A vida tinha de seguir o seu percurso e ela era demasiado metódica para aventuras impensadas, faltas no trabalho para matar as saudades ou orgasmos demasiados breves e clandestinos. Quando exigissem dela a saída dos eixos, a resposta era curta e objectiva: vamos terminar. Era o seu mundo e quem nele entrasse que se adaptasse.


Intumba vivia com métodos, organização e disciplina, não tolerava o copo sem a base, a panela sem a sua tampa, o fogão sujo depois do almoço. Organizava o seu redor para poder organizar-se a si mesma. A limpeza, a regra, a ordem.
Mas o imprevisto um dia chega até mesmo para aqueles que acham que têm o tempo em suas mãos. O sinal do caos surgiu quando teve de se mudar para Luanda a trabalho. Ela odiava a cidade, o cheiro, os costumes. Vida demasiado desorganizada para o seu gosto, demasiado imprevisível para os seus hábitos quase ingleses. Nos primeiros anos a moça lutou contra o deixa andar. Quanto mais caótico tudo ao seu redor decorria, mais austera se tornava. Limpeza, ordem; ordem, limpeza.


A leitura frenética dos rótulos dos detergentes, a comida sem transgénicos, o prato medido na balança, a água de duas em duas horas, o champô natural, o óleo de coco, o leite soja, a retirada do açúcar e o trigo, não a impediram do maior imprevisto da sua vida, sem planos, sem timing, sem aviso: a paixão desenfreada e clandestina por Kimbá.


Depois de Kimbá, Intumba odiou mais Luanda. O ódio passou dos hábitos para as pessoas. Kimbá tirou-lhe dos eixos, das planilhas e pirâmides de produtividade. Desorganizou-lhe a mente e a vida. Colocou-a num abismo. Questionou a sua vivência. Não tinham nada em comum: ela com planos e prazos de entrega; ele, uma confusão ambulante. Ela com sonhos claros, palpáveis, concretos; ele demasiado subjectivo, demasiado embaciado, demasiado nublado como Luanda
em dias de chuva.


Intumba não sabia explicar como foi parar nos seus braços. E odiava exactamente isso: não ter uma explicação lógica pela paixão desenfreada por Kimbá. Uma paixão que a arrancou brutalmente do chão e colocou-a numa cratera, um local de perigo, insegurança e falta de cuidado. A ordem aos poucos foi se dissipando, a lógica substituída pelas emoções. O sexo aos sábados começou a ser feito às segundas. Perdeu o controlo e manuseamento do tempo. O tempo já não era seu, não fazia dele o que bem entendesse. Perdeu o dom, perdeu a magia e
com ela outras facetas do seu eu começaram a nascer. Kimbá destruiu a sua vida. Acuou os seus dias. Colocou-a num mundo que não era o dela. Onde o normal era o caos, a destruição, o hoje, sem uma rápida vista-de-olhos no futuro.


Intumba mal se reconhecia. Não era ela, há muito que tinha deixado a sua natureza para se adaptar a alheia, uma natureza demasiado primitiva para ela, sem a possibilidade de controlar a vida e o tempo. Pessoas regradas quando perdem os freios destroem mais do que comboios desgovernados. A moça não acreditava, ela sempre tão cuidadosa, tão saudável, tão picuinhas, tão chata,
descuidou-se logo por Kimbá. Esqueceu-se de ler os rótulos da vida nos olhos dele. Ela sem vícios, encheu o coração de vícios logo por ele. Evitar os agro-tóxicos, não foi o suficiente para não se tornar toxicodependente por amor.


E como esperado, Kimbá foi apenas um tornado, rápido mas com um poder de destruição enorme. Desorganizou as suas planilhas e partiu. Ela ficou com o coração triturado mas com a missão de o recompor. Tinha de organizar-se, colocar tudo no seu devido lugar. Arrumar os móveis, consertar os partidos, limpar o pó, esfregar o chão para tirar a sujeira dos dias de desordem, consertar o teto, organizar os livros, reaprender a domar o tempo. Mas naquele dia, Intumba, só queria dormir na cama desarrumada e sem ouvir o relógio biológico tic-taquear. Consertaria tudo no dia seguinte. Ela só queria que o tempo seguisse o seu rumo natural sem o laço de ninguém para o domar.