A transdisciplinaridade na poesia netiana: uma abordagem transversal

Nestas páginas, abordaremos as quatro dimensões (enunciadas mais adiante) que julgamos ser o substrato da transdisciplinaridade da poesia netiana.

Agostinho Neto é, indubitavelmente, umas das principais referências da nossa literatura, não pelo facto de ter sido o proclamador da independência e o primeiro presidente de Angola, mas por ser um dos poucos que, entre Viriato da Cruz, António Jacinto e Mário Pinto de Andrade, conseguiu expressar os anseios mais profundos do povo.

Ora, numa viagem à poesia netiana, é possível notar que além de poéticos, os seus escritos abarcam aspectos de outras esferas do saber. Quer dizer, o seu discurso poético não se limita no âmbito da literatura. Estende-se a outras áreas do conhecimento humano. Por esta razão, podemos dizer que a poesia de Neto é, do ponto de vista do conteúdo, transdisciplinar.

O termo transdisciplinaridade constitui-se do prefixo trans (do latim, trans que expressa: movimento para além de; situado além de; através de; ou o que transcende) e da palavra disciplinaridade. Esta deriva de disciplina que aqui assume acepção de “ramo do saber” e “não respeito às normas estabelecidas” (um dos seus significados, igualmente). Por assim dizer, e conforme consta nas Diretrizes da Educação Básica do Brasil (2013, p. 22), “transdisciplinaridade refere-se ao conhecimento próprio da disciplina, mas situado além dela. Busca a unidade do conhecimento na relação entre a parte e o todo, entre o todo e a parte”.

A principal característica da abordagem transdisciplinar é a aproximação das diversas disciplinas e áreas do conhecimento, que, embora tenham enfoques particulares, uma delas permeia a realidade de outras disciplinas. Segundo Artes (2018), a poesia netiana “está marcado por uma pluralidade de realidades e tendências…”.

A presente reflexão desenrola-se sob os diferentes ângulos epistemológicos os quais nos remetem a um exercício discursivo transversal. O termo epistemologia (espistémé, ciência; logos, discurso), nesta abordagem, entende-se como um olhar meticuloso acerca dos conhecimentos, não apenas obtidos pela(s) ciência(s), conforme argumenta Carvalho (2009, p. 6), mas também o resultado da análise de textos literários.

Nesta abordagem, e como delimitação do tema, apraz-nos destacar quatro dimensões nas quais julgamos estarem elencadas parte significativa da obra poética netiana. Estas, a priori, podem ser resumidas na dimensão histórica, dimensão antropológica, dimensão pedagógica e, a posteriori, dimensão filosófica. E partindo do princípio matemático segundo o qual “a ordem dos factores não altera o resultado”, esta ordem não deve ser tida como a única, tal qual a apresentámos. Julgámos abordar estas dimensões e ordená-la deste modo, por questões metodológicas e com o intento de favorecer o discurso.

Dimensão histórica

De acordo com Laranjeira (2007, p. 14), um dos aspectos mais relevante da poesia de Neto é o facto de ser um documento histórico e de história, porque “documenta a existência, entre 1945 e 1956, do movimento popular de luta e de liberação de Angola…” E é ao mesmo tempo documento de história, por ter servido de instrumentos de luta, através do qual ele conseguiu adentrar na realidade histórica do seu povo, retratar as suas vivências e, de forma mais profunda e metódica, e sem descurar a realidade objectiva dos factos, arrojar-se contra o colonizador atroz, denunciando-o sábia e sistematicamente.

O que acabámos de verificar pode ser verificado nalguns versos, em que o poeta espelha a história verídica do seu povo, conforme podemos notar no poema “Partida Para o Contrato”, nos últimos versos: Não há luz/ não há estrelas no céu escuro//tudo na terra é sombra// Não há luz / não há norte na alma da mulher// Negrura/Só negrura (Neto, 2016, p. 27). Neste poema, predomina a desilusão do artista, quando lamenta a triste realidade de milhares de seus irmãos vendidos como mercadoria e, como bestas, levados para terras distantes aonde iam trabalhar em condições desumanas, torturados, acabrunhados e vetados dos seus direitos fundamentais, e até mortos. Portanto, denuncia a escravatura.

Em contrapartida, o poeta, imbuído num espírito crítico e atento à realidade do seu tempo, entende que a escravatura e a exploração despoletadas pelos abutres, como ele mesmo os denominava, não seriam eternos e, seguindo os princípios da dialéctica, reconhece que tudo na natureza é transitório, e toda a realidade está sujeita ao perecer e ao devir. E antevendo “o abrandar da tempestade”, acreditava que o amanhã podia trazer o brilho no rosto do seu povo, a luz que anunciasse a liberdade. Por isso, deixou de confiar na “mística esperança”, uma vez que aprendera a viver dum modo diferente.

Desta feita, o poeta, na altura jovem, cheio de sonhos, vê-se obrigado a abandonar a sua mãe (pátria), prometendo regressar num cômputo de tempo. Pois, de tanto esperar, viria a tornar-se no esperado. Assim, nas últimas estrofes do “Adeus a hora da largada”, rematou: Amanhã / entoaremos hinos à liberdade / quando comemorarmos a data da abolição desta escravatura // Nós vamos em busca de luz / os teus filhos mãe / vão em busca de vida (2016, p. 25).

A segunda dimensão verificada é antropológica. A dimensão antropológica (antropologia: antropos, homem; logos, tratado ou discurso), concebe o homem na sua realidade histórico-cultural. Segundo o antropólogo Vagner Gonçalves da Silva, a Antropologia é o estudo do homem como ser biológico, social e cultural. Esta é de facto uma definição holística que compreende o homem não só do ponto de vista individual, mas também como ente que influencia o próximo e age sobre a natureza.

Sob este ponto vista, o poeta exprime as aspirações mais profundas do povo e não só, como também busca exaltar a negritude dos africanos. Ele não se limita a denunciar e desmascarar o colonizador. Vai mais além. Mostra-se determinado a defender os Angolanos, mas sem perder de vista a idiossincrasia do povo e a sua visão de humanidade desde uma perspectiva africana sobre a qual radica todo o seu projecto de vida. Ele, sendo escritor africano, procurou incitar o seu povo para uma sociedade mais justa e humana.

A título de exemplo, o poema “Saudação”: “A ti, negro qualquer / meu irmão do mesmo sangue / Eu saúdo! /Esta mensagem / seja o elo que me ligue ao teu sofrer /indissoluvelmente / e te prenda ao meu Ideal /[…] // Esta é a hora de juntos marcharmos / corajosamente para o mundo de todos os homens // Recebe esta mensagem[…] / ó negro qualquer das ruas / das sanzalas do mato / sangue do mesmo sangue / valor do humano na amálgama da Vida / meu irmão // a quem saúdo” (2016, pp. 57-58)

Neste âmbito, Neto mostra-nos um sentido filantrópico, humanista e de conscientização da magnitude do africano, tal como ocorre nos poemas “Sangrentas e Germinantes”, “Mussunda Amigo”, “À Reconquista”, “Sábado nos musseques”, só para citar alguns.

Dimensão pedagógica

O vocábulo pedagogia (do grego: paida, criança; gogía, conduzir), no presente diálogo, é utilizado não como teoria ou prescrição da educação, mas como prática ou resultado da práxis educativa. Nesta vertente, estamos a discorrer sobre o que alguns teóricos da educação designam por educação literária.

É sabido que a literatura, como manifestação cultural de cada povo, sempre desempenhou o papel de educadora dos cidadãos e promotora do espírito nacionalista, desde que a ela tenham acesso os membros da sociedade afins.

Por exemplo, os poemas “Criar”, “À Reconquista, “Havemos de voltar”, “Homenagem a Joaquim Forte de Faria”, entre outros, revestem-se de um valor pedagógico muito forte. Quando o poeta diz “Criar criar / criar no espírito criar no músculo criar no nervo // criar no homem criar na massa // criar // criar com os olhos secos” (2016, p. 80), é notável a preocupação do poeta com a formação do homem e da sociedade. Entende que o homem esclarecido, conhecedor de si e da sua história, está mais propenso a contribuir para o progresso e revolução sociais. E, para reforçar essa ideia, convida o seu irmão a voltar para “África dos gabinetes de estudos”. Os versos “Homenagem a Joaquim Forte de Faria” são uma amálgama de química, matemática e psicologia, menção que o poeta faz ao seu amigo dos anos da academia.

Dimensão filosófica

Chegamos ao cume da pirâmide. A filosofia, sendo uma disciplina do conhecimento que trata da essência, causa e efeitos de tudo o que existe, questionando, igualmente, os comportamentos (cf. Carvalho, 2009, p.16), constitui a quarta dimensão dos versos da obra em análise. Neto, de forma sábia e ousada, questiona a autoridade do colono, critica as suas práticas e demarca-se de aceitar o jugo pesado do explorador.

O anteriormente exposto é o apanágio do “Poema Renúncia Impossível”, um verdadeiro exercício filosófico. Este cumpre com dois pressupostos fundamentais da filosofia: atitude negativa e atitude positiva. A atitude negativa, em filosofia, é um dizer não ao senso comum, aos pré-conceitos, aos pré-juízos, aos factos e às ideias da experiência quotidiana.

Em “Renúncia Impossível”, o poeta começa por negar. Nega ser o ser que o colono forjou, através de ideologias discriminatórias. Não aceita a realidade que lhe foi imposta, pois sabia que ele (o povo) não nasceu para ser escravo de outrem, muito menos para ser explorado. Por isso, diz: “Não creio em mim/ Não existo/ Não quero, eu não quero ser […]// Não sou. Não existo. Nunca fui/ Renuncio-me/ Atingi o Zero…” (2016, p. 143). Neste poema, fervilha o espírito de revolta, na medida em que o poeta (representando a voz do povo) mostra-se desiludido de viver grudado na crença de que a sua raça era inferior à do opressor. Portanto, resolve destruir a falsa identidade criada pelo sistema colonial.

E para provar que jamais desistiria do seu projecto de vida, que é a liberdade do homem negro e o engrandecimento do seu estado futuro, adopta a segunda atitude filosófica: positiva. Assim, verseja: “Ah!/ Faça-se luz no meu espírito/ LUZ!//[…] Eu sou. Existo/ As minhas mãos colocaram pedras nos alicerces do mundo…” (2016, p. 144).

Portanto, corrobora-se que o poeta, ao invés de partir para simples afirmações, antes submete-os ao crivo da razão e, por essa direcção, afirma-se ser um povo que merece o direito de ser livre e de ser dono do seu destino.

Desta feita, resulta imprescindível e até urgente promover, nas instituições de ensino, organizações juvenis e sociedade em geral, o estudo sobre a poética de Neto, visto que se reveste de uma riqueza conteudística valiosa e útil para a emancipação intelectual da juventude.

O desafio de dissecar o tema, que não se esgotou aqui, deixa em aberto espaço para futuras análises, visto que, não só penetrámos em um campo pouco explorado, como também discorrermos acerca de uma figura de tamanha dimensão, cuja influência ultrapassou as fronteiras geográficas, culturais e do tempo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Artes, H. (2018). Análise transcendental da poética netiana. Luanda, Recuperado em 1 de Dezembro de 2018 de http://palavraearte.co.ao/analise-transcendental-na-poetica-netiana/

Carvalho, J. E. (2009). Metodologia do trabalho científico. Lisboa: Escolar Editora.

Laranjeira, P (2007). A poesia de Agostinho Neto como documento histórico: promoção da liderança, projecto de libertação nacional e organização de movimento popular, em 1945-1956.

Ministério da educação e cultura do Brasil (2013). Diretrizes da educação básica do Brasil, recuperado em 1 de Dezembro de 2018 de http://portal.mec.gov.br/docman/julho..

Neto, A. (2015). Obra Poética Completa: Sagrada Esperança, Renúncia Impossível, Amanhecer. Luanda: Fundação António Agostinho Neto.