A virgindade da palavra

Gostaria nunca mais acordar. O sol é mais quentinho na minha cama. Meus lençóis sabem melhor.
Um vento gostoso. Na rua, um enxame de criança assiste, alegres, aos cães colados. Os cães fazem mesmo amor ao ar livre; ninguém os perturba. A criançada sorri.
Uma velha de meia-idade lê um jornal antigo de folhas carcomidas. Ajeita os óculos já cansados, vê o lead de um noticiário em letras muito garrafais: JESUS ESTÁ A VOLTAR, PREPARE-SE. Tem medo, a velha. Sua. Parece desabar o mundo dela. Não acredita no que acaba de ler. “Jesus está a voltar??”, interroga-se sem saber a resposta.
Dez horas da noite. Apetece-me fumar. O fumo da liamba espanta bruxos e feiticeiros. Quero hoje dormir em paz. Folheio a memória; vejo o filme do dia: alguém virá matar-me nesta noite. Os minutos correm. Distraio-me. Faço um compasso para apressar o sono. Assalta-me saudades do tempo em que eu era uma adolescente. Os garotos todos vinham à minha trás. No Liceu Salvador, professores conquistavam-me; mandavam-me cartas de amor. Eram tempos… Ainda me lembro da minha primeira viagem ao Namibe. As dunas, o deserto, a welwitchia, as girafas, a Leba…, sim, esta encantou-me bastante. Agora tenho a idade de Cristo. Sou Puta.
A bíblia aberta num livro qualquer. Chão esburacado. Ajeito as tranças para dormir. Batem a porta. Tenho medo. É quase meia noite e meia. Tremo. Suo. O coração entra em choque. Ouço passos no corredor. Um barulho de arma. Congelo-me. Tento não acreditar. Uma sensação estranha (de morte) perpassa-me a tez. Estou convicta: vou morrer. Silêncio. Ouve-se apenas o som da respiração. Procuro uma saída de emergência. “Há sempre uma solução”, dizia minha mãe. Mas ao que parece, a minha é morrer. Tento me conter. Como um assassino profissional, dispara uma bala para atiçar meu medo. Lacrimejo. Lembro então de todo mal que terei feito nestes 33 anos de idade. As traições, o roubo, as palavras torpes, tudo. Choro, silente. Embora todos te abandonem, dizia minha amiga Paula, Deus jamais te abandonará. Aceito o verso em memória. Vou morrer nas mãos de Deus.
Alfim, o assassino encontra-me de joelho: Deus, perdoe-me, receba-me; se for sua vontade, dê-me só mais uma chance para viver.
O cano da arma quente sobre minha testa. Olha pra mim, surpreso. Levanta-me.