ABEL ABRAÃO, A VIDA LIDA PÁTRIA

Abrangência e a multidisciplinaridade da visão que se tem do mundo dependem, em primeira instância, das informações disponíveis sobre o mesmo. Sendo ele um espaço em que o inferno e o paraíso medem forças, existem dados cuja difusão requer pôr à prova os limites da resistência humana por parte de quem mantém intenso o interesse ou obrigação de transmiti-los. Uma das actividades à qual essa exigência se impõe é na reportagem de guerra feita no momento e a partir do terreno em que ela estiver a decorrer. 

A mbwanga pulula em múltiplas latitudes feito o hóspede cuja presença não precede de convite e cuja despedida deve ser esforçada. Ainda não está tão longe o tempo em que ela esteve a pular de galho em galho dentro das bordas do território angolano, colocando irmãos a trocarem presentes explosivos. Tal como aconteceu em outras paragens do globo, nessa parcela de terra também existiram indivíduos que deram o melhor do seu melhor para tornar acessíveis informações atinentes às reais nuances da guerra. Ou melhor, houve igualmente em Angola repórteres de guerra.

Um deles é (era) designado por dois nomes oriundos das épocas idas.

O primeiro nome re(a)corda a memória para o duelo original entre confrades contado no livro da vida. Quanto ao segundo, o mesmo livro põe à luz do dia as ascensões e privações do ente que ele próprio descreve como sendo o pai da fé. Não obstante serem nomes diferentes, eles cruzam-se, dado o facto de pertencerem a individualidades cujas maneiras de lidarem com o bem maior atravessaram meridianos e paralelos, influenciando multidões milhões à adopção de atitudes e acções que toma(ra)m relevo pelos valores morais cívico, espirituais e divinos.

Obviamente, tais nomes bíblicos terão aportado em Angola, país situado por baixo do eco (d)a dor e à esquerda do meridiano de Greenwich, transportando nas malas o pendor idealista. Daí que muitos pais baptizaram seus filhos com algum desses nomes, na ânsia de disponibilizarem à família, à sociedade, ao país e não só, cidadãos que, para além da beldade de personalidade, possuíssem poder suficiente para convencerem os demais a imitarem as suas acções. Porventura, terá sido por isso que os pais do repórter de guerra supra referenciado decidiram em dar-lhe o nome de Abel e, como se ainda fosse cabucado, escolheram o Abraão para com esse caminhar sem cessar.

Abel Abraão é uma daquelas entidades que vêm ao planeta cor de mar cientes das respectivas missões e que delas não se desencaminham, apesar das assaz ácidas circunstâncias. Ele divorciou-se do cordão umbilical de sua mãe em 1962 na província onde Angola detém o seu centro e a nascente de seu maior rio. Nessa província, ele cresceu numa altura em que o verso “Criar com os olhos secos”, extracto de um poema de Agostinho Neto, aplicava-se em todas facetas da sociedade, porquanto havia nada para fazer o que quer que fosse. Contudo, conseguiu realizar o sonho que sonhou desde tenra idade: ser jornalista.

O ano de 1980 foi aquele em que o natural do Bié concretizou tal sonho ao ser admitido nos quadros da Emissora Provincial do Bié da RNA, Rádio Nacional de Angola, precisamente na redacção desportiva. Volvido algum tempo do perpétuo tempo, foi transferido para a direcção de informação. Enquanto profissional dessa área, a vida de Abel teve contornos mui visíveis. Ele saiu do anonimato para herói nacional, tendo suas proezas ecoadas para além dos marcos de Angola, devido ao seu efervescente compromisso com o serviço, ao qual se acresce o contexto bastante decisivo (para o país) em que desempenhou as suas funções.

Tio Belito, como também era mansamente tratado pelas pessoas que lhe eram mais próximas, enamorou as luzes da ribalta ao radiografar o extremo sofrimento da população durante a guerra pós-eleitoral que grassou Angola. Constam nas amargas páginas dessa kitota, iniciada em 1992, o período em que a cidade do Kuito esteve sitiada. Escusando os animais irracionais, ninguém para lá ia, ninguém de lá saía, porque as tropas da UNITA haviam-na cercado. No decurso do cerco, a cidade que na era da outra senhora era chamada de Silva Porto foi o porto para onde as tropas acima mencionadas fizeram atracar seus projéteis e outros quejandos, metamorfoseando a mesma num cenário com semelhanças apocalípticas às centenas.

Por inerência da profissão mesclada com a mestria, o jornalista da direcção de informação sentiu ser sua a missão converter em claras palavras os “ayués” que as populações espargiam nos becos, ruelas, ruas e avenidas, levando as mãos ao encontro das próprias cabeças. Apesar do impacto paralisante da pintura onde as cores predominantes eram a morte e a destruição, ele fez as suas reportagens com uma performance tal que lhe soergueram ao ápice da glorificação, da perseguição. 

Para além dos estilhaços que lhe causaram fundas feridas e de ter sido obrigado a usar farda da polícia na ocasião em que os militares da UNITA transportaram todos haveres de sua casa, Jonas Savimbi, líder da UNITA na altura, colocou a cabeça do tio Belito a prémio, garantindo 300 mil dólares a quem o retivesse vivo e o fizesse chegar aos seus militares.

Em 1994, Abel Abraão foi agraciado com o prémio Maboque de Jornalismo na sua edição número um. Porém, o reconhecimento do jornalista que se deleitava a ler Uanhenga Xitu não teve aí a sua foz nem a sua voz. Dias antes da sua partida para o além-mundo, ocorrida a 26 de Novembro de 2019, participou na inauguração da Mediateca do Bié que, final e felizmente, foi baptizada com o seu nome: Mediateca Abel Abraão.

Na mensagem de condolências que o presidente da República de Angola, João Manuel Gonçalves Lourenço, enviou à família do repórter de guerra, este afirmou: “As suas reportagens diárias sobre os dramas e vicissitudes vividas na cidade sitiada eram acompanhadas com emoção por Angola e pelo mundo, pela forma como conferia verdade humana ao esforço de sobrevivência de todos os seus habitantes”.

Acenando adeus, o branco véu que cobre o céu de Angola resulta da acção coordenada de inúmeras mãos, algumas dessas mãos pertenciam aos militares, outras aos jornalistas, outras a quem preferia ocultar a sua profissão, outras a quem não tinha profissão e etc. Transcorridos quase dez anos depois do alcance da paz, não se pode permanecer à sombra da bananeira, tendo ao abrigo do cérebo a convicção de que só a compra de armas e a construção de infraestruturas impedem o retorno da guerra. Para o mais adequado usufruto desses bens, é igualmente primordial que os nomes e as práticas das pessoas cujas mãos teceram o véu da paz sejam exaltados. Só assim, as gerações de hoje e, sobretudo, as gerações que o futuro reserva terão altaneiros exemplos de patriotismo para se gui(a)rem.

As actuais crianças angolanas manifestam maior interesse em perseguir as peugadas do caranguejo do que as de Abel Abraão. Esse último nem sequer é conhecido.

O que se adivinha para a Angola de amanhã?