Análise do poema “A infância perdida” de Ernesto Lara Filho

Sabe-se já que o texto poético requer uma análise, meditação muito concentrada para poder descodificar a linguagem simbólica, subjectiva que ele apresenta. O presente texto procura analisar o poema “Infância Perdida”, de Ernesto Lara Filho, escritor benguelense.

Assunto do Poema

Este texto faz uma abordagem da infância vivida pelo sujeito poético com o seu amigo Edelfride, grande nome do futebol Benguelense, para quem ele dirige estas lindas palavras. Infância esta que se desenrola em Angola, particularmente em Benguela. Ao longo do poema, o sujeito poético não se declara ou posiciona como de uma determinada raça, porém dá-nos a entender que se trata de alguém mestiço ou branco, uma vez que, na décima primeira estrofe, nos mostra este pormenor: o eu-lírico, como poema mostra, aprendeu por meio do amigo a amar pessoas negras. Um outro aspecto que nos leva a este pensamento são algumas brincadeiras como andar de bicicleta que, naquela altura, ainda não era para todos. O texto fala de um tempo de meninice que se perdeu no tempo mas sempre presente na memória do sujeito poético.

Estrutura Interna

Do ponto de vista interno, podemos dividir este poema, a nosso ver, em duas grandes partes:

•             a primeira parte trata-se  de uma descrição da infância vivida pelo sujeito poético e o amigo que vai da primeira estrofe até a oitava. Uma descrição muito sustentada pela anáfora de “Nesse tempo” e de “Era no tempo”. Ou seja, é por intermédio destes termos anafóricos que o sujeito poético vai caracterizando o seu tempo, além dos verbos (Nesse tempo…/a gente comprava dois pacotes e cinco mangas…/Nesse tempo…/a gente fugia…).

•             na segunda parte, o sujeito poético aborda tudo que aprendeu com os ensinamentos de seu amigo. Isso parte da nona à última estrofe.

Estrutura Externa

É um poema com uma estrutura externa que se diferencia das formas fixas ou padronizadas, caracterizado por ser extenso, versos brancos ou livres, embora, em algumas estrofes, haja versos que rimam com outros como os da terceira, quarta, quinta, sétima e oitava, e despreocupação com a métrica. Parece que os sentimentos do eu-lírico se confundem com os do autor, pois aquele usa uma linguagem coloquial caracterizada, mormente, por palavras menos poéticas, ou seja, um poema cuja linguagem é mais próxima do quotidiano de sua época. A sua extensão tira-lhe o excesso de simbolismos, próprios das formas fixas. Trata-se de um poema próprio do movimento literário modernista (modernismo). Uma maneira de pintar poemas muito comum na poesia da geração Mensagem ou do Movimento dos Novos Intelectuais Angolanos (1948), e, a nosso ver, podemos considerá-la como a corrente dos nossos poetas daquela altura (poetas como Agostinho Neto, António Jacinto, Viriato da Cruz também são adeptos desta forma de escrita).

Pontuação

Numa análise mais minuciosa do poema, verificaremos que excepto uma estrofe, todas outras são pontuadas por um ponto (.), mas por que razão há frequência desta sinalização? O que se sabe é que em textos poéticos o simbolismo é muito forte, e tudo pode indicar para uma realidade específica. A nosso ver, o autor usa esta pontuação para caracterizar os sentimentos do eu-lírico em relação à sua infância como uma realidade que passou, acabou ou finalizou, no sentido que cada acto que o sujeito poético vai mencionando já não voltará, ou seja é uma realidade que o tempo levou.

O autor usa esta pontuação em dez vezes, por que razão? O número dez é simbólico, leva-nos à totalidade, plenitude e também à perfeição. É por isso que o escritor foi usando-a em cada fim de lembranças do sujeito poético, para nos dar a ideia de ele ter passado uma infância completa, plena.

A Linguagem

Este pormenor é muito interessante, na medida que se num lado admitimos o carácter simbólico do texto poético que passa por uma codificação da mensagem, noutro lado devemos ter em conta que é por intermédio da linguagem que ele nos revela o implícito ou explícito.

Se virmos bem o próprio texto, dá-nos a entender que foi escrito antes da independência, uma vez que o sujeito poético faz o uso de palavras que caracterizam este determinado espaço de tempo. Para demarcar este tempo cronológico e histórico, temos palavras como “macuta” e “angolar” – moedas usadas na época colonial – que, tanto uma como outra, são muito antigas e não próprias do nosso tempo. A macuta é a mais antiga, foi instituída por Dom José I em Angola e circulou até 1928, era cunhada em prata e cobre. Actualmente, quando se fala, por exemplo “Isto não vale uma tuta e meia”, a expressão “tuta” parece-nos uma corruptela de “Macuta”, moeda. Já “Angolar” foi uma moeda que foi usada em Angola entre Setembro de 1926 e Dezembro de 1958 e substituiu o Escudo Angolano. A verdade é que as duas palavras são muito antigas, próprias da época em que não existia Angola como nação.

Além destas duas palavras, há no texto frases que falam de realidades próprias da época colonial, repare, por exemplo, que na sétima estrofe o sujeito poético fala de brincadeiras que actualmente no município de Benguela vê-se com alguma raridade (Era no tempo do visgo/que a gente punha na figueira brava/para apanhar bicos-de-lacre e seripipis…)

Os termos anafóricos no texto

Os termos anafóricos “nesse tempo” e “era no tempo” repetem quatro vezes, e estas repetições demonstram uma certa expressividade, uma vez que nada no texto é desprovido de significado. Mas o que o sujeito poético quer demonstrar com esta repetição? Queria, possivelmente, o eu-lírico enfatizar o seu tempo de menino que está expresso no título “Infância Perdida” e apresentá-lo como parte da sua vida necessária, e a infância é uma fase necessária que nos permite estabilidade na nossa vida quando adultos, um aspecto de que o pai da Psicanálise, Sigmund Freud, fala nos estádios de desenvolvimento humano. E é isto que o número 4 simboliza, isto é, estabilidade. Estes termos repetidos, além da expressividade que demonstram, também concorrem para as figuras de linguagem, neste caso, a analepse, embora não comum nos textos líricos em que a ficção não é muito presente. Esta consiste em regressar no tempo para poder contá-lo. Na oitava estrofe, podemos encontrar sinfronismo com um outro poema da literatura angolana, “A Mulemba Secou”, isto na sua segunda estrofe.

O uso de determinadas expressões e o Português de Angola

Um outro aspecto interessante consiste na escolha de determinadas palavras no processo das lembranças do sujeito poético. Por exemplo, sabemos já que a expressão “nesse tempo” é anafórica, mas há uma razão do eu-lírico usar este determinante demonstrativo, razão esta que se deve ao facto deste ser usado, geralmente, para indicar um tempo passado que é o que nos parece neste caso, ou seja, trata-se de um tempo anterior ao momento que o sujeito poético se encontra, fazendo perceber que é um tempo passado que é a sua “Infância Perdida”. Há, nas três primeiras estrofes, o uso frequente do nome próprio Edelfride, nome de uma antiga glória do futebol benguelense que nomeou o Estádio Municipal Edelfride Palhares Costa “Miau” e na quarta o sujeito poético revela o grau de proximidade que ele tem com o seu amigo ao tratá-lo de uma forma mais carinhosa e próxima, “Miau”, como era mais conhecido. Além deste substantivo, há também no texto o uso de nomes utilizados para designar espécie de pássaros típicos da fauna angolana e em particular benguelense (siripipis, catutuis), uma forma de exaltar Angola. O nome “ginguba”, um empréstimo bantuístico, é a palavra que é mais comum em Angola para designar amendoim, um termo mais usual em Portugal, o que é uma clara demonstração que o português em contacto com as línguas nacionais ganha distinção ao falado em Portugal.

Na sétima estrofe, concretamente no quinto verso, o sujeito poético usa o substantivo “quintalão” mais o adjectivo qualificativo “grande” em posição atributiva, uma marca própria do português angolano. Repare que a palavra “quintalão” é um aumentativo de “quintal”, o que significa que aquela é um espaço cercado, muito vasto, não precisando mais o adjectivo qualificativo “grande” para designar esta realidade, porém esta construção sintáctica é muito comum no nosso português.

Os Modos e os Tempos verbais

No que tange a este aspecto, é importante que se saiba que o modo mais frequente é o indicativo que é o modo da realidade por excelência, do facto, da certeza. Mas há uma razão para isso. A nosso ver, deve-se ao facto de esta infância que o sujeito poético fala ser mesmo real, isto é, aconteceu realmente. Repare que, por exemplo, no verso “A gente «comprava» ∕ dois pacotes de ginguba ∕ na loja do Guimarães” ou “a gente «fugia» da cidade” há o uso desse modo. Outro pormenor importante, refere-se ao uso frequente do pretérito imperfeito, o tempo da acção incompleta, em 19 vezes, ou seja, este tempo verbal atravessa todo o texto, mas o que se deve ter em conta é o facto de ele ser mais usado na primeira parte do texto, o que dá entender que as acções que o sujeito poético enuncia eram contínuas ou habituais, aliás, o aspecto iterativo ou habituativo é muito frequente no texto. Em sentido contrário, o pretérito perfeito é mais usado na segunda parte do poema, e em nove vezes.

Dimensões da Literatura

O poema em análise, a nosso ver, possui a dimensão sócio-cultural, pois é escrito numa linguagem que faz o uso de palavras próprias da realidade sócio-cultural angolana, como “quintalão grande” ou “ginguba” no lugar de “amendoim”. Também encerra a dimensão histórica, já que, como afirmámos, o texto se localiza num determinado espaço de tempo, época colonial, e, por outra, há o uso de palavras que fazem parte da nossa história como “Macuta”, “Angolar” que foram moedas usadas no país no passado. A dimensão estética também possui, uma vez que podemos encontrar no texto figuras de estilo, uma subjectividade e conotação, assim como uma linguagem simbólica que proporciona o estético, o belo e torna-o um texto literário (Reis, 2008). Aliás, a linguagem literária é o que torna um texto literário. Afirmamos que há esta dimensão, porque podemos encontrar no texto figuras de estilo (anáfora), (analepse), e porque, por isso, possui aquilo que Jakobson chamou de litteraturnost (literariedade), fazendo dele um texto literário.

Angolanidade e amor a Ombaka

Com este texto, o autor demonstra a sua angolanidade não apenas através do uso de uma linguagem com palavras do nosso português (quintalão grande), que sujeito poético usa, mas também porque ele demonstra um amor e admiração à cidade de Benguela, apresentando as suas artérias e as brincadeiras de Angola nesta cidade e naquele tempo, isto é, no poema, apresenta-se os bairros históricos da cidade (B. Benfica, Cavaco), e o sujeito poético faz alusão a um doce (ginguba com açúcar, o chamado paracuca), muito usado até hoje nos arredores de Benguela.

Infância perdida

(para o Miau)

Nesse tempo, Edelfride,

Com quatro macutas

A gente comprava

Dois pacotes de ginguba

Na loja do Guimarães.

Nesse tempo, Edelfride,

com meio angolar

a gente comprava

cinco mangas madurinhas

no Mercado de Benguela.

Nesse tempo, Edelfride,

montados em bicicletas

a gente fugia da cidade

e ia prás pescarias

ver as traineiras chegar

ou então

à horta do Lima Gordo

no Cavaco

comer amoras fresquinhas.

Nesse tempo, Miau,

(alcunha que mantiveste no futebol)

nós fazíamos gazeta

da escola coribeca

e íamos os quatro

jogar sueca

debaixo da mandioqueira.

Era no tempo

em que o Saraiva Cambuta batia na mulher

e a gente gostava de ver a negra levar porrada.

Era no tempo

dos dongos da ponte

dos barcos de bimba

dos carrinhos de papelão

Como tudo era bonito nesse tempo, Miau!

Era no tempo do visgo

que a gente punha na figueira brava

para apanhar bicos-de-lacre e seripipis

os passarinhos que bicavam as papaias do Ferreira Pires

que tinha aquele quintalão grande e gostava dos meninos.

Era no tempo dos doces de ginguba com açúcar.

Mais tarde

vieram os passeios nocturnos

à Massangarala

e ao Bairro Benfica.

E o Bairro Benfica ao luar

O poeta Aires a cantar

(meu amor da rua onze e seu colar de missangas…)