Análise transcendental na poética netiana

Há algum tempo essa parte, vem se questionando o porquê da inexistência de especialistas nos estudos da poesia de Neto. E nós, sem intenções de responder a estes questionamentos, trazemos mais uma análise à volta da poética de Netiana (de Neto), quanto ao transcendentalismo.

Para o efeito, é-nos necessários entender que «Transcendental», conforme o Dicionário Integral Língua Portuguesa é de ‘‘origem latina TRANSCENDERE”, que nos remete a “passar além ou por cima do normal, do natural” (2014, p. 1449). Pelo sentido etimológico da palavra, subentende-se a tudo que ultrapasse a formalidade da ciência, da explicação da lógica intransponível. Está para além da rigidez formal e, em última instância, vasa os limites da compreensão textual. Todavia, análise transcendental submete-se à condição primária designada por leitura, posteriormente a sua cosmo-contextualização. Um dos vectores da análise transcendental é a dimensão catártica que reactiva a sensibilidade individual, colectiva, nacional e humanista dos diferentes receptores sociais. A expressividade e a relevância do conteúdo contribuem também para que se efective o processo da análise transcendental aquando de reencontro de situações semelhantes.

Os poemas seleccionados para análise transcendental são, no nosso entender, os que melhor se enquadram nas múltiplas esferas sociais dos dias de hoje, embora com outro formato, tendo rompido as fronteiras do seu tempo, como manifesto de um contexto, de um regime que, actualmente, ainda se debate com problemas de estratificação social; de governação; de valores patrióticos; culturais; humanos, inclusive de formação académica. Numa visita de campo à província do Cunene, constatámos que existe um número considerável de crianças que, diariamente, percorrem longas distâncias de casa a escola e vice-versa. Exemplo do estudante, Rúben Kondjachili que fazia uma hora a pé do kafitu à escola Oifidi, no ano de 2013. Passado cinco anos, temos ainda o estudante Pelágio que tem feito o mesmo trajecto desde 2013 até ao presente ano. Logo, esses estudantes percorrem mais de duas horas a pé por dia. Como no Cunene, existem, por esta imensa Angola, tantos estudantes nestas condições ou ainda piores. Após quarenta e tal anos de Independência, Angola debate-se ainda com a problemática de crianças fora do ensino escolar: Hoje (…) /os garotos sem escola (…)

O referido trecho do poema “Adeus à hora da largada”( 2016 p. 25) está marcado por uma pluralidade de realidades e tendências. O trecho que se segue é uma afirmação da não-negação:Somos nós mesmos/os contratados a queimar vidas nos cafezais (2016 p. 25).

Se lermos os “contra”, dar-nos-á a ideia de resistência. Notar-se-á também um sentido eufemista através do grafema “queimar” que subentende trabalho fora do limite. Ao percorremos sobre a palavra “cafezais”, a mesma circunscreve o campo de plantações de café. Nos dias actuais, assume maior preponderância, em função do dinamismo temporal que passou abranger o campo de todo trabalho esforçado ou com características coloniais. Os vestígios da colonização continuam vigente nas atitudes quotidianas, de forma branqueada e com um neo-modelo de actuação. Exemplo disto é que, nos últimos anos, os trabalhos de maior porte físico é entregue aos nativos e com salários de miséria. Caso concreto, na construção civil.

Nos últimos anos, em Angola, os que detêm o poder económico e político-militar têm abusado do poder judicial. O sujeito poético, em Neto, alertou-nos: os homens negros ignorantes /que devem respeitar o homem branco / e temer o rico (2016, p. 25). Não é por acaso que João Lourenço, ciente da realidade na sua tomada de posse à presidência de Angola, em 2017, disse “que ninguém é tão poderoso ao ponto de não ser punido, e que ninguém é tão pobre ao ponto de não ser protegido”. Numa entrevista feita no bairro da Estalagem, no município de Viana, os moradores contaram-nos da falta constante de energia: Somos os teus

[filhos]

/ dos bairros de pretos/além aonde não chega a luz eléctrica /os homens bêbedos a cair/ abandonados ao ritmo de um batuque de morte (2016, p. 25).

Estes problemas são de todas as épocas, inclusive também em sociedades tidas como a do primeiro mundo – e que marcam a poética netiana –, factos praticamente impossíveis de serem desagregados do mundo, mas que podem ser reduzidos, a medida em que os homens adquirirão a consciência universal e, sobretudo, humana, e um abandono ao medo e aceitação conformista: teus filhos /com fome / com sede (…) / com medo dos homens / nós mesmos (…) (2016, p. 25).

O poema “Sábado nos Musseques” (2016, p. 28), em linhas sociológicas, não só estabelece as assimetrias entre o sábado do musseque e o da cidade como também aborda o modo de vida do musseque. E segundo Goldmann (1973, p. 56):

Existe, na sociologia actual e sobretudo em sociologia da literatura, uma escola importante que pensa ser impossível a sociologia situar-se fora da sociedade e eliminar todo o julgamento de valor explícito ou implícito.

O Sábado nos Musseques, na perspectiva do sujeito poético, congrega os reais problemas sociais de um país em colonização, desde a falta de compreensão até ao amor ao próximo, assim como a palavra humilde, sociologicamente, esteve quase sempre associada às características de pobreza; homens sem formações; bairros sem condições de vida e hoje com valor diferencial mais acentuado, relactivamente à estratificação social: Os musseques são bairros humildes / de gente humilde (2016, p. 28). Neste mesmo poema, a ansiedade é o fio condutor do sujeito poético. A mesma adquirirá diferentes significados segundo o cosmo do sujeito receptor em determinados contextos anafóricos do texto.

Numa entrevista feita em Viana, Estalagem, segundo o entrevistado, o jovem Nelson,

Em 2012, um amigo seu ia mantendo relações sexuais com a sobrinha de 12 anos. Depois resolveu envolver-se com a outra sobrinha de 10 anos, irmã da menina de 12 anos. A mesma não aceitou e resolveu contar aos pais, ainda assim, o jovem saiu impune (19h:48, 09/02/2016).

O trecho que se segue reflecte com maior lucidez os problemas que foram arrastados pelas águas da descolonização, quiça o esvaziamento da razão e, sobretudo, do humanismo: Ansiedade no homem /escondido em recanto escuro / violando uma criança sua riqueza calará o pai (…) (2016, p. 29). Neste rolo de entrevista, para melhor enquadramento do nosso estudo, o jovem Jorge relatou-nos que

em 2010, em Viana, estalagem, uma menina que vivia com a tia, e o marido de raça branca, mantinha relações sexuais com a menina e, em troca do seu silêncio, comprava tudo que a jovem pedisse. Facto que levou a tia a indagar-se por que motivo a sobrinha tinha o seu marido em mão? Após ter descoberto a verdade, para salvaguardar a sua relação e o bom nome da família, expulsou a menina (17h33,06/02/2016).

Os órgãos de difusão massiva angolanos têm trazido a público os diversos casos de violação que teimam em reinar em Angola. O mais polémico e mediático foi o caso “gindungu” que ocorreu, em 2015, numa das hotelarias em Luanda.

A revolução prestada pela poética netiana perspectivou uma nova descoberta no valor humano, no sentido de contrapor à cultura dominante colonial. Hoje, de formas tímida e persistente, tem neoclonado os acontecimentos coloniais e mantendo um diálogo constante com a actual realidade. Para maior sustentabilidade da nossa abordagem, relactivamente a comportamentos anti-sociais que comprometem as relações humanas e atentam à integridade física e moral dos homens em geral, transcrevemos o presente trecho: Ansiedade ouvida na contenda da taberna Compadres discutindo escandalosamente velha dívida de cem mil réis (2016, p. 30). No trecho mencionado, “ansiedade” é a resolução por meio da força desmedida plantadora do caos. Por sua vez, a “taberna” fora do seu significado primário, poderá, em nossa análise, abarcar um lugar-comum, um local de desabafo ou ainda um local de conversas soltas e desvairada, lugar de encontro. No sentido de não existir sinónimos perfeitos, “réis” poderá equivaler à kwanza na transversalidade semântica. Por exemplo, foi divulgado, no programa televisivo “Opinião Pública”, da TPA, um acontecimento trágico que sucedeu no bairro da Sapu em que “dois homens (…) assassinaram uma família por motivos de uma dívida de cem mil kwanzas” (2016). Numa alusão à crise religiosa, que tem marcado o mundo, recorrer-se-á a uma reestruturação morfossintáctica que se consubstanciará num outro valor semântico: (…) [com]padres discutindo escandalosamente / velha dívida entre murmúrios / da numerosa assistência. Em nossa análise, transcendental na poética netiana recorreu-se a este método para se aferir o dinamismo religioso, as suas tendências de teoria e acção. A palavra “padre”, embora pertença ao campo do cristianismo, o nosso cognitivo compreende com algumas objecções de conceito, ou seja, qualquer “líder religioso”. A questão da dívida é colocada como sendo um mal-entendido que esteja no subconsciente; uma acção mal interpretada ou propositada. Daí que para Karl Marx (como citado em Macedo, 2010, p. 75) “A religião seria mero ópio do povo, ataviado por uma série de mitos, sinónimo de fantasia, irrealismo, evasionismo perante as dificuldades da vida e a explicação teológica da origem e estrutura do cosmo”. Numa conversa mantida com Ernesto, crente da Igreja Tocoísta, confidenciou-nos que

A igreja está em crise espiritual desde a morte do líder Simão Toco. Por razões económicas e de não-aceitação do novo líder, assistiu-se a criações de várias alas com a mesma denominação. Ex. Osório Marques fundador de outra ala de Simão Toco, situado na rua (…) e os doze mais velhos situado na rua (…) (20h30,12/02/2016).

Embora a ciência trate de casos verificáveis na prática, não descartamos, na presente análise transcendental na poética netiana, a problemática em torno da figura do kimbanda na cultura africana, sobretudo angolana: Ansiedade (…) / no homem que consulta o kimbanda para conservar o emprego /na mulher que pede drogas ao feiticeiro para conservar o marido (…) (2016:32). E ainda na senda do feiticismo, a palavra “droga”, no contexto actual, poderá significar o conjunto de ervas para pôr na comida que é mais usual, segundo os dizeres populares. A título de exemplo, o Sr. João contou-nos “…que foi vítima de práticas de homem cozinhado pela mulher nos anos 2000” (14h:37, 17.02.2016).

Como se pôde verificar, portanto, a análise em torno desta temática na poesia netiana tende a ser vastíssima, comprovando também, e com a ajuda do tempo, a qualidade dos poemas de Neto, indo contra algumas opiniões sobre o conjunto da sua obra. E como sempre, não terminamos, ficamos por aqui na certeza de melhorar sempre as nossas comunicações.