Azul e Branco

Me entendo ter noventa anos, não de idade, mas de alma. De idade tenho míseros cinquenta. Renasci vigoroso nessa tão aclamada metade de um século em que os desassosegos da alma são deixados para trás, o acordar de todas as manhãs é de imprecisão abismal e as memórias são fiéis companheiras. Ao acordar na manhã de hoje indaguei-me sobre a minha vontade absurdamente excessiva de aparar a barba e cortar o cabelo para tornar-me atraente, coisa que não faço há mais de vinte anos. Pois é, desejo tornar-me atraente, mas para quem? Ah… é mesmo uma ideia ridícula!
A idade avançada trouxe consigo o mínguar da massa óssea, a redução da frequência cardíaca e o desabrochar do entendimento próprio. Apesar de meio abatido, magro de razão e graúdo de pensamentos, solidifiquei meu hábito diário de contar histórias de uma Luanda dançante, cenas dos palcos da vida por mim desconhecidas e da humanidade perdida em meus poemas ao longo dos anos. Nunca tive grandes amigos, e os poucos que chegaram perto disso estão mortos. Nunca fui casado, porque provavelmente nunca amei uma mulher. Em véspera de meus aniversários, visitava um bordel na Mutamba, onde havia perdido minha virgindade e passava à noite com uma simpática portuguesa de nome Suzana, que milagrosamente era tudo o que precisava, daí que logo no segundo encontro passei a chamar-lhe Suzy. Era suzana para qualquer que ocupasse o lugar vazio na sua cama, mas para mim, era Suzy, a minha Suzy. Mas até a Suzy pereceu e eu continuo vivo.
Há, exactamente, uma década quando ouvi pela primeira vez a solidão bater a minha porta em forma de convite para as bodas de ouro de meu primo, fiquei desnorteado e cresceu em mim um pavor a lugares isolados, como a minha casa. Deixara de escrever, e com isso perdera a coragem de me expor ao mundo. Mas minha alma à beira da morte questionava meus pensamentos juvenis todas às noites: para que servem os idosos nessa sociedade? Que caminho há para mim nessa terra de contínua reforma moral? Passei então a percorrer as ruas dessa cidade barulhenta – com ruídos melódicos e bafientos – meio celestial e de moral forjada, o que aumentou meu desejo de inventar uma profissão para a minha velhice.
Aconteceu em Luanda, mas eu fantasiava ter acontecido longe daqui, num lugar intensamente humano, lotado de vidas abnegadas da vaidade e desejosas de enterrar beijos no rosto coberto de lágrimas de um velho escritor. Aqui porém, tudo parece meticulosamente calculado, especialmente a vida de um escritor sem sucesso e desfalecido no tempo como eu.
A idade avançada trouxe também consigo a esperança e a incerteza de ver o Sol nascer diariamente. Meus pensamentos juvenis tornaram-se tempestades num pequeno mar ao redor de mim, um mar vazio de água, cheio de poesia musical e sem ouvidos para contemplar a beleza sinfônica da vida. Se talvez fosse uma sereia a cantar, ouviria, mas era um salmão. Salmão?! De que me interessa ouvir canções de um salmão? Luanda era o mar, mas ninguém me ouvia. Contava histórias pouco felizes porque a felicidade era para mim uma utopia, como o amor e um paraíso repleto de rostos eternamente sorridentes na casa do Senhor.
Caminhava por longas distâncias, deleitava-me com as vozes na rua, o cheiro a guerra e a festa. Eu era uma casa desorganizada e levava comigo um livro, apenas um, pois não precisava de mais do que isso. Quando parava, contava uma história diferente como se estivesse a lê-lo, mas não, fiz dele meu parceiro da mentira. Agia como profissional, porém não cobrava por meus serviços. Afinal, o povo nada tinha, pois a guerra levara tudo. O egoísmo em mim fez-me acreditar que contar histórias me convenceria de que não era um falhado. Embora transformado pelos aromas da vida urbana que despertava em Luanda, eu era um abismo de melancolia sem fim. Havia até mesmo falhado com minha promessa de morrer antes dos trinta e cheguei aos cinquenta com força juvenil, ah… que merda! Não era nem bom o suficiente para morrer, mas covarde o suficiente para não tirar minha própria vida. Tornei-me então no primeiro Contador de Histórias que Angola alguma vez conheceu. Os táxis eram os meus lugares favoritos para historiar, daí ter adotado o nome Azul e Branco. Os bares eram sedutores e histórias não faltariam, mas o facto de existirem muito poucos nessa cidade tornou-lhes numa opção quase descartável.
Minha profissão da velhice tornou-se numa profissão sem custos – excepto a solidão das noites em que palavras não limpavam as lágrimas, escorrendo torrencialmente dos meus olhos.
Uma estrada abria-se, ouvia-se o som de conchas escuras tocando lentamente um cavaquinho, e a voz de um outro Salmão tornava-se mais audível. Um cantar sossegado, quase como que despedindo-se da vida de artista do mar, elucidava-me: a Sereia foi esquecida, perdeu seus poderes divinais e eu continuei minha caminhada pela estrada com palavras reprimidas – muitas silenciosamente furiosas por não existir ouvidos para ouvi-las e outras recitando poemas de Ondjaki com ternura para minha alma envelhecida.
Ainda lembro-me como se fosse hoje, preso num engarrafamento típico de Luanda, no trajecto do Hoji-ya-Henda à Mutamba, no calor dos diabos presente nessa terra, quando um jovem de nome Ernesto olhou para mim e disse:
– Envelhecer é alcançar a segunda vida.
– O quê? És poeta?
– Sim, e tu, és poeta?
– Não, sou um ex-escritor, hoje contador de histórias.
– Vives o que contas?
– Conto o que sinto, o que dá no mesmo, pois viver é sentir.
– Quantas histórias trazes? Conta-me uma até a paragem, se gostar pago-te o táxi.
– Meu filho, histórias para contar são inúmeras, eu é que sou pouco!

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