“Barroco Tropical”, sobre a mensuração da crítica jus-literária

Enquanto horizontes possíveis, a relação entre o Direito e a Literatura possui um cunho de extrema importância para se (re) pensar o fenómeno jurídico, ou seja, para despertar a possibilidade de se reflectir sobre o fenómeno jurídico não apenas no ângulo da racionalidade prática, mas também a partir de uma racionalidade emocional ou empática, proporcionada pela literatura que assume um valoroso papel na tentativa de examinar os condicionamentos, os diferentes usos da linguagem e a vocação problemática do Direito.

Ao trazermos em tela a narrativa “Barroco Tropical”, de José Eduardo Agualusa, lançada em 2009, objectivamos marcar determinados pontos da obra, onde analisaremos a intersecção entre o Direito e a Literatura, a viabilidade do estudo do Direito através da Literatura e as opções do uso da mesma. Nesta narrativa que, livremente, na trilha de avanços e recuos no tempo, Agualusa retrata de forma viva a sociedade angolana, desde o paradoxo relacionado ao preconceito com as diferenças, a violência, a política, a cultura, a liberdade, o poder, as crises, a ambição desmedida, a pobreza e os imensos problemas sociais de Luanda.

Latu sensu, a obra jurídica e a obra literária partem de um contexto que poderíamos chamar de problemático, ou seja, enquanto o Direito surge dos factos, a obra literária, a partir da realidade, aparece no contexto ficcional. Tanto um como o outro, seja baseado na realidade ou na ficção, originam-se de problemas que podem ser concretos ou não. Ambas possuem em comum a forma de se expressar (a linguagem), ambas são disciplinas textuais que possuem uma natureza linguística, o que as credencia como formas de expressão da comunidade:

Sangue Frio vira Humberto na televisão, durante a campanha eleitoral, a atacar o presidente, e ganhara-lhe uma raiva obtusa. Sabia que morava com outros dois deputados da oposição […] decidiu ir lá buscá-los. Não teve sorte. Humberto viu-o chegar (sabia quem ele era) comandando uma tropa de exércitos embriagados, chamou-o e disparou. A primeira bala arrancou-lhe uma asa. A segunda atravessou-lhe o pescoço.

É possível analisarmos aqui a frágil tolerância política e o preconceito na sociedade angolana em relação às diferenças, não obstante vivermos num país democrático de direito (ex vis art. 2º da Constituição da República de Angola – C.R.A.). O comportamento de Sangue Frio sofre influência dos costumes do poder político que, destruindo o valor do diálogo, formata o cidadão para que enxergue, apenas, uma única forma de pensar o país. As normas jurídicas não são suficientes para se construir a verdadeira democracia, se antes não existir um substrato axiológico que humaniza a sociedade, como vimos nas palavras de Ost (2004): “Os valores e categorias tradicionais do direito necessitam de releituras.” (p. 10) Neste contexto, a literatura ocupa um papel essencial ao provocar a ciência jurídica a olhar para si mesma, revendo as suas posturas formalistas tradicionais. “À literatura é atribuído um papel criador” (Aguiar e Silva, 2001, p. 5), este papel criador possui a capacidade de provocar mudanças ao interrogar determinados valores estruturantes do Direito, auxiliando no sentido de redefini-los:

o centro de saúde mental Tata Ambroise recebe apoio governamental, de instituições privadas e de familiares dos acorrentados. O governo entrega a Tata Ambroise não apenas os doentes mentais sem eira nem beira que vagueiam pela cidade e arredores mas também um ou outro dissidente mais contestatário […] as politicas governamentais (…) e de uma verdadeira democracia, seja lá o que for, já indicia, na opinião dos nossos dirigentes, certa instabilidade mental.

O centro de saúde Tata Ambroise reflecte o modelo de sociedade que construímos desde a honrosa independência, uma sociedade assentada nos pilares da politização robotizada, apharteiderizada, baseada em panegíricos e adulação para quem ostenta o poder e que, sobretudo, viola os direitos fundamentais dos cidadãos consagrados na magna lei, e, nas palavras de Miranda, (2006), “aqueles direitos fundamentais, prima facie definidos como direitos inerentes à própria noção de pessoa, como direitos básicos da pessoa; ou, olhando logo às relações com o Estado, como direitos essências do cidadão.” (p. 60) No entanto, enquanto o Direito através das convenções mune a realidade com códigos de conduta, por sua vez, a Literatura suspende as certezas, colocando em desordem as convenções, fragilizando, desta forma, os pretensos saberes positivos os quais o Direito tenta apoiar. Na essência, procuramos reflectir sobre a possibilidade de o Direito recuperar o diálogo com novas leituras sobre a realidade.

É necessário explorarmos elementos para a análise literária da ciência jurídica, demonstrando a conexão existente entre Direito e Literatura, com o objectivo de resgatar o senso de um tempo em que a justiça era poética, quando os debates académicos e sociais se desenvolviam em ambiente de paixão, hoje abandonado pela crescente burocratização do papel desenvolvido pelos pesquisadores em nossas universidades e pelos operadores do Direito na praxis jurídica (Schwartz 2004, pp. 125-134).

Esta análise literária da ciência jurídica proposta por Schwartz, pensámos que permite apresentar um novo rosto do Direito fora daquele direito concebido somente como a letra da lei e de técnica linguística. A nova face jurídica dá azo para que se estabeleça um novo factor de transformação do homem, dentro da esfera valorativa e necessária de respeitar o próximo, de conciliar sentimentos e de efectivar o senso de justiça

[…] gabou-se de ter sido ele quem, em 1975, no inicio da guerra civil, construiu a notícia segundo a qual os dirigentes de um dos movimentos de libertação se banqueteavam com carne humana. Malaquias da Palma Chambão trocou Luanda por Lisboa poucos meses depois da independência […]. Regressou ao país após o fim da guerra como director de um semanário chamado o impoluto. O jornal é utilizado pelo regime para perseguir todos os contestatários. […] os editoriais de Chambão tornaram-se famosos devido à extrema brutalidade, maledicência […].

A liberdade de imprensa consagrada no art. 44º da C.R.A. é ciclicamente violada, e o poder político detém boa parte das empresas de comunicação e manipula as informações ao seu bel-prazer. Agualusa parece fazer uma incursão histórica, relembrando que a manipulação das informações possui as mesmas décadas que a nossa independência. O nosso direito de imprensa sofre das cicatrizes históricas que a enclausuram num abismo aterrador. É nosso entender que após a elaboração do texto legal, a interpretação passa a ser um fenómeno predominante das decisões judiciais, e, neste acto interpretativo, os juízes são condicionados pelas mais diferentes variantes, inclusive políticas e literárias:

Certo dia, entrevistado por um dos pequenos semanários que na altura se multiplicava em Luanda, comentei distraído o vago aborrecimento que sempre me provocou a poesia de Agostinho Neto. E acrescentei – «Foi um estadista, não um poeta, a poesia era para ele uma outra forma de fazer politica. Deixou-nos apenas meia dúzia de versos, quase todos medíocres.» […] O jornal de Angola, órgão oficial do governo, exigiu em altos brados a minha prisão […] Creio estarem reunidos todos os requisitos para processar Bartolomeu Falcato por traição à pátria, desrespeito pelos símbolos nacionais e vergonhoso ultraje a moral pública […] crime previsto e punido pelo artigo 420.º do Código Penal.

Bartolomeu Falcato é vítima do uso da sua liberdade para expressar as suas ideias e convicções sobre determinados assuntos do país. A cultura do julgamento e linchamento público, a cultura do “xé, menino não fala política”, a cultura de que não se pode falar sobre determinadas figuras do regime no poder (a não ser que seja para laudes), às vezes, inconscientemente, influenciam certas atitudes e decisões negativas das instituições públicas e até mesmo privadas ligadas ao regime.

O envenenamento de pessoas acusadas de feitiçaria na comuna de Capunga,[…] está a preocupar as autoridades locais. […] a maioria dos aldeãos, inclusive os esclarecidos, tomam partido daquele costume tradicional, afirma o administrador municipal […].

A nossa constituição reconhece a validade e a força do costume (ex vis art.7º). Exiatem, porém, alguns costumes e hábitos que comprometem o desenvolvimento da sociedade, como a feitiçaria, e que empobrecem o nosso modus vivendi. Esta problemática atinge todos os extractos sociais. Por exemplo, o que a ciência jurídica pensaria sobre a problemática do feitiço, da tala em Angola? A comunidade jurídica tem um grande desafio de repensar o Direito através da criação de espaços críticos onde a interdisciplinaridade seja um facto, onde haja cruzamento do Direito com as demais áreas do saber, e assim ser possível questionar os seus pressupostos, seus fundamentos, sua legitimidade, seu funcionamento, sua efectividade.

“Barroco Tropical” é esta narrativa literária em que dela podemos abordar temas relativo ao estado, ao poder, à sociedade, aos regimes ditatoriais, à justiça, à alienação, ao uso da linguagem enquanto factor de manutenção de poder, à estratificação social, à supressão da liberdade e do subjectivismo no âmbito de disciplinas como Teoria Geral do Direito Civil, Direito Constitucional, Ciência Política e Introdução ao Estudo do Direito. O ensino do Direito necessita de constantes revisões críticas, no sentido do seu aprimoramento, e a Literatura, neste contexto, exerce um importante papel, tendo em vista que nem sempre o Direito encontra respostas adequadas para os seus dilemas, dentro das suas próprias estruturas ou dentro dos próprios códigos e doutrinas. A aproximação do cultor do Direito à Literatura é uma excepcional oportunidade de aprendizado, auxiliando-o a compreender melhor a ciência jurídica. Este estudo interdisciplinar é o terreno fértil para os cultores da ciência jurídica lidarem com situações muitas vezes relegadas ao segundo plano pelo Direito, vivenciando outros contextos, avaliando outras variações do fenómeno jurídico, aprimorando, inclusive, a capacidade de expressão oral. A experiência jurídica não pode confinar-se desligando-se da realidade, impedindo o contacto e a experiência com outros modelos de interpretação da vida e do mundo. A Literatura, para o jurista, deve ser entendida como algo que, certamente, o transformará em um intérprete ou aplicador da norma, mais crítico e menos suficiente.

Referências bibliográficas

Aguiar e Silva, J. (2001). A prática judiciária entre Direito e Literatura. Coimbra: Almedina.

Constituição da República de Angola. (2010).

Miranda, J. (2006). Escritos vários sobre Direitos Fundamentais. Estoril: Principia.

Ost, F. (2004). Contar a Lei: as fontes do imaginário jurídico. São Leopoldo: Unisinos.

Schwaetz, G. (Dez., 2014). Direito e literatura: Proposições para uma observação de segundo grau do sistema jurídico. Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, 125-134.