CAI A NOITE, CAI A PALAVRA
 DIÁLOGOS DE METAPOESIA EM POEMAS DE LUÍS CARLOS PATRAQUIM E HIRONDINA JOSHUA

A mão em eterna construção cai no tempo. O tempo em eterna

construção cai na mão.

(Hirondina Joshua)

quando a Palavra cai até à sua última altura

um incêndio magnífico recomeça

(Luís Carlos Patraquim)

As incursões sobre metapoesia nas produções poéticas de Moçambique já são sobejamente trabalhadas por críticos e escritores. Em especial, a poesia do período pós-independência do país, em 1975, na conhecida Geração Pós-80. No período, marcado pelo desencanto dos ideais da libertação do país, houve um retorno ao cenário da poesia existencial. Cíntia Machado de Campos Almeida, pesquisadora da poesia de Luís Carlos Patraquim, faz as seguintes considerações sobre o período:

O que antes significou o desejo pela instituição dos direitos nacionais, neste novo instante literário fez dos direitos individuais a sua bandeira definitiva. É importante ressaltar que migrar ao eu não submeteu o sujeito poético às rédeas da subjetividade. Ao contrário; ao invés de enclausurá-lo nele mesmo, permitiu-lhe ir além de si próprio, num jogo de experimentações poéticas embriagado de lirismo existencial. Afinal, não mais se deveria adiar o verso capaz de enaltecer a vida, acreditar no amor, extravasar emoções, desbravar o espaço onírico, investir nos afetos, promover a metapoesia como veículo de reflexão da escrita e, enfim, ressignificar a palavra esperança. (ALMEIDA, 2011, p. 93)

Como mencionado pela pesquisadora, Luís Carlos Patraquim foi um dos poetas que despontou no período, desde o seu livro de estreia Monção (1980). O poeta, escritor, roteirista e jornalista ainda é uma referência de lirismo para a poesia africana de língua portuguesa. Principalmente, no âmbito da metapoesia, aspecto explorado durante esse período e presente em produções contemporâneas, seja de Patraquim – como nos poemas do livro O Escuro Anterior (2010) –, seja de poetas que fazem parte da nova geração de autores moçambicanos.

Fazendo parte dessa nova geração, temos Hirondina Joshua, poeta, escritora e membro da Associação dos Escritores Moçambicanos, com duas obras individuais publicadas: a mais recente Como um levita à sombra dos altares (2021), um exercício experimental de escrita, e seu livro de poemas, que será objecto deste artigo, Os ângulos da casa, lançado em Moçambique pela Fundação Fernando Couto, em 2016, e, no Brasil, pela editora Penalux, em 2017.

Diante da importância de autores como Luís Carlos Patraquim para a construção da poesia moçambicana e elaboração de suas frentes literárias e, também, da potência da escrita de Hirondina Joshua, dentre poetas mulheres que despontam no país após tanto tempo apenas com nomes singulares como os de Noémia de Sousa e Glória de Sant’Anna, é possível analisar como os movimentos de poesia na escrita desses poetas revelam algo além da intertextualidade – e aqui, por ordem de gerações, seria coerente o diálogo intertextual de Patraquim empreendido pela poesia de Joshua, na qual se nota uma escrita consciente e crítica.

Para início de investigação, leia-se o poema de Hirondina Joshua presente no final do livro, como um epílogo, uma declaração do que foi experimentado até ali, sempre a partir da origem do ser e de ser:

Gosto da palavra “medula” se calhar por ter sido a única que me

restou nas oficinas de escrita.

Na verdade, esta palavra é um texto que caminha desesperada

para um lugar sem sítio.

Se há uma subjectividade no texto é ela a Vida de certeza. Não

o contrário. A força de inventar, de interpretar, de abstrair, de

procurar é ela a Vida.

E os olhos escondem-se nas cortinas para os que amam o mistério.

O verdadeiro ministério.

— Restou-me a palavra “medula”. Encontrei-a na oficina de escrita.

O corpo do texto não sei onde foi posto. Sei, apenas que lhe foi

diminuído aos poucos como se diminui o ramo longo e inútil.

Cada opinador era criminal. Ia matando, aos bocados sem dó nem

dor.

E neste crime restou-me a “medula”. A vidente “medula”.

(JOSHUA, 2016, p. 79)

Neste poema, Hirondina Joshua se volta para dentro da matéria. Em primeira pessoa do singular, com tom de relato, a poeta cita oficinas de escrita, que evidenciam a escrita como um processo de aprendizado e prática. Podemos refletir sobre o valor de se pensar o acto da escrita como ciência, método, tentativa e erro para uma mulher na periferia do mundo. De um continente visto ainda como inerte, que sobrevive sob a cadência das emoções, uma mulher jovem escreve sobre os passos dados para a formação dos versos e subverte uma visão de fora, mas também de dentro, já que “Cada opinador era criminal. Ia matando, aos bocados sem dó nem / dor.”

Os primeiros versos do poema revelam o ritmo que espelha a inquietação do “resto”, como se os versos livres acompanhassem a inquietação, as alterações de sensibilidade (CANDIDO, 2006) de um pensamento em constante quebra de expectativas. A medula, a parte interior e anterior do osso e que o sustenta, é o que resta, como se a única via possível de escrita fosse a partir do que há de mais profundo em si, no corpo do poema e da subjetcividade. Para quem se dispõe ao projecto, parece que há a promessa de se avançar ao longo da escrita, um caminho de produção e registro no papel. Mas, a cada quebra de desejo entre o primeiro e segundo versos, entre o terceiro e o quarto, voltamos ao que o poema pode nos oferecer: o seu ritmo e a cesura que nos tomam como um golpe. O segundo verso quebra o nosso desejo por mostrar que a poeta gosta do que resta. O quarto verso mostra que voltamos ao que resta – como a poeta faz ao apresentar um poema sobre a medula – porque estamos sempre em direção “para um lugar sem sítio”, para a suspensão. A suspensão desse lugar sem espaço é a interrupção do final do verso. É a cesura do presente, o que nos faz voltar sempre ao tutano e lembrar a nossa condição de leitura. Pela quebra, é comprovado: trata-se de um poema. Só através do poema se chega à medula e pela medula se faz o poema. Danielle Magalhães, em estudo e resgate teórico sobre o verso livre, diz:

O verso como uma escrita inclinada para o acidente seria, antes de tudo, uma celebração da quebra como crise fundamental. Celebrar a violência, a quebra ou a ruptura do verso significaria celebrar a explosão da tradição, o estilhaçamento dos dogmas, os abalos das estruturas fundacionais, a queda do absolutismo. Ser testemunho de um acidente significaria ser testemunho de uma acidentalização do poder. (MAGALHÃES, 2020, p. 198).

Joshua explode a tradição e os dogmas ao expor o que é esperado para a feitura do poema. Na segunda parte do poema, a partir de um travessão: “— Restou-me a palavra “medula”. Encontrei-a na oficina de escrita.”, há um segundo movimento de testemunho da presença da medula. Ela, não mais somente o que resta, é encontrada. A “vidente” se fez vista, mesmo que já não houvesse corpo do texto.

A crise fundamental continua a ser celebrada, já que entre os versos – “O corpo do texto não sei onde foi posto. Sei, apenas, que lhe foi / diminuído aos poucos como se diminui o ramo longo e inútil” – há a revelação da dor. Essa dor é necessária por ser um acidente da página do poema, entre montanhas, no penúltimo verso. A quebra ocorre antes da repetição de um crime. Voltar o olhar para a medula é obedecer ao percurso do crime de quem tolhe o poema. A poeta recortou seus versos para que ganhasse ênfase o que coloca em risco o poder: “para um lugar sem sítio”, “O verdadeiro ministério”, “dor”. Apesar de todos os obstáculos de uma leitura entre relevos abruptos ao longo do poema, a medula permanece, porque é “Vida” maiúscula.

A noção do que há de mais profundo no osso, como a “medula” de Joshua, já era presente na escrita de Luís Carlos Patraquim, com destaque à segunda parte de Lidemburgo blues, publicado em 2007, e retomada na antologia O osso côncavo e outros poemas, de 2004. Almeida (2014) denomina esse movimento de adentramento como osteopoética e discorre sobre a metáfora do osso:

O osso compreende a parte mais interior do corpo. Símbolo de resistência e de permanência, é a “vida materializada” e o “suporte do visível”, de acordo com as leituras bordadas por Chevalier e Gheerbrant (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2002, p. 666). No entanto, os trabalhos poéticos de Patraquim não se esmeram em ressignificar os ossos. O qualificativo do título é claro: é o osso côncavo a substância lírica eleita pelo poeta. A concavidade, forma cavada, oca e, portanto, dotada de profundeza, permite uma aproximação metafórica do simbolismo da caverna: residência da morte, do passado, do inconsciente e do interior. (ALMEIDA, 2014, p. 183)

Dentre diversos exemplos desse momento de sua poética, destacamos o poema a seguir, de O osso côncavo e outros poemas (2004):

Ela dorme sobre as crateras do Verão;

eflúvia, regurgita a primeira Carne

anterior e a Mão anterior;

Ela afaga o dorso de deus, a mão

que desenha a curva de um pensamento,

o osso côncavo como um Arco

de linfa arborescendo a Noite;

Ela sobe dos escombros da terra

por uma vigília, uma Porta estreita, a mão

que incendeia a desolada paisagem

e senta-se sobre a carne, a primeira

noite Anterior; Eflúvia,

regurgita o sangue gelado de deus.

(PATRAQUIM, 2011, p. 92)

Do que há de mais profundo na escrita, Patraquim nos apresenta as crateras como lugares de repouso. A depressão presente em corpos celestes nasce do abrupto impacto de outro corpo sobre a superfície. Dormir, recuperar energias, sobre a aspereza da cratera mostra que a escrita surge do abalo, da força exterior e do golpe que tolhe o texto, como visto no poema de Hirondina Joshua.

O pronome feminino, primeira palavra do poema, anuncia “a importância do lugar reservado ao elemento feminino em sua poesia: em seus versos, a mulher jamais representou a criatura, aquela que foi moldada a partir de uma costela masculina, mas antes a criadora” (ALMEIDA, 2014, p. 184). Assim como a “medula”, substantivo feminino, órgão líquido do corpo humano e criador de integrantes anteriores, as células; fluida e eflúvia. Em vez do osso da costela – no centro do corpo, osso de sustentação e proteção –, segundo a tradição judaico-cristã sobre Adão e Eva e o criacionismo, surge a “mão / que desenha a curva de um pensamento” em contacto com o “dorso” divino. Emerge a vulnerabilidade da mão, uma extremidade do corpo que, como o “ramo” de Joshua, é diminuída e, na mesma medida, dá a “Vida” da subjectividade com sua inicial maiúscula, também anunciada no poema anterior, através da feitura da poesia.

A mão elabora a “curva” e prevê um retorno. É como partir de uma das extremidades do formato côncavo e chegar a outra, voltar à mesma altura, mas não da mesma forma. O que separa as duas extremidades é, precisamente, a curva. Não à toa a metáfora está presente na segunda estrofe do poema, a do centro entre duas outras instâncias, e as três palavras (“curva”, “côncavo” e “Arco”), escolhidas pelo poeta para descrever seu movimento, têm a letra “c” em destaque, com a cratera do alfabeto em sua forma. As acções no início das partes concebem o curso ao longo do texto. Como em um jogo visceral entre temática e forma, é possível observar os três verbos nos primeiros versos de cada estrofe, “Ela” “dorme”, “afaga” e “sobe”, partindo de um ponto de repouso na primeira estrofe, desenhando a curva em crateras de “c”s na segunda estrofe e retornando em subida na terceira estrofe.

Isto posto, percorrer o poema é brincar com um bumerangue. O movimento de subida, a partir da forma abaulada e dos escombros do impacto, dá-se após profunda meditação e, pela noite, através de caminhos com referências judaico-cristãs, como a “vigília” e a “Porta estreita”. Na Bíblia, em Mateus 7:14 (ARA[1]), lê-se: “porque estreita é a porta, e apertado, o caminho que conduz para a vida, e são poucos os que acertam com ela”. Mais do que exortar sobre um modo de regresso, o poeta parece sinalizar como a escrita cria as metáforas que atravessam séculos e tradições e, ao mesmo tempo, as destrói e “incendeia a desolada paisagem” com um fogo purificador, com força do “Verão” para assim retornar, regurgitado, não somente a “Carne anterior”, presente na primeira estrofe. Ao final, após a curva, o que temos é “a primeira / noite Anterior; Eflúvia”. São revelados não somente os materiais, como a “Carne” e a “Mão” (1ª estrofe) e o processo do nascer da “Noite” (2ª estrofe). Neste instante, o poeta alcança a potência do movimento da poesia, manifestada pela palavra “Anterior”, na busca desse lugar primeiro. Como no último verso do poema de Hirondina Joshua, “E neste crime restou-me a “medula”. A vidente “medula””, mais um componente primário revela que o destino é a origem. Vidente porque conhece o futuro, a “medula”, de forma contraditória, “caminha desesperada / para um lugar sem sítio”, que talvez seja o lugar Anterior, que Patraquim ainda apresentará em outros poemas. Se na partida, no primeiro verso, há o calor do “Verão”, no retorno e último verso, o “sangue gelado de deus” oferece o arrepio da matéria concluída.

Ângulos da casa nos concede o decurso da escrita. Se, no poema anterior de Hirondina, temos a menção à origem, no poema a seguir discorremos sobre o desenvolvimento, o lugar e o momento dessa escrita:

Por exemplo:

a noite

escala a minúscula raiz

das coisas

simula a boca

abatida da tarde

erudita dialéctica

dos lábios

ou dos dedos

a língua dos olhos…

de repente

chega-se sem sair

instantes que se fazem verbo.

(JOSHUA, 2016, p. 70)

Desde o primeiro verso do poema, percebemos a exposição da metapoesia. Começar com “Por exemplo:” – mantenhamos nossa atenção aos dois pontos – evidencia a consciência absoluta do que está por vir. É o aviso para uma explicação e um convite para dividir a compreensão sobre a poesia. Os enjambements, as cesuras entre versos tão curtos revelam como, apesar de o conteúdo ser um exemplo, ainda é um poema, mas mais que isso.

A metáfora que abre o exemplo, “A noite”, o 2° verso inteiro, é a responsável por escalar. Aqui, notamos a abertura para dois movimentos: o de elevar-se e o de designar funções. Escalar, em seus significados, parece uma função essencial para o projecto da escrita. A seguir, a segunda acção da noite é simular que tem como sinónimos termos como “representar”, “fingir”, “fazer parecer real”. Então, na primeira estrofe, a noite, mostra a solidão de seu verso curto. À primeira vista, ela poderia ser só um espaço de tempo, mas também é personificada e escalada para a produção do poema.

Na segunda estrofe, o poema conduz-nos a pensar que “erudita dialética” e “a língua dos olhos” são versos e termos espelhados. Não que sejam equivalentes, mas são colocados, pela disposição no poema, como reflexivos. O verso “erudita dialética” surge como uma definição formal, com termos científicos, enquanto que “a língua dos olhos” é o jogo sinestésico da linguagem poética sem restrição. Segundo o poema, é possível ficarmos entre as duas etapas até que, finalmente, no último verso, “instantes que se fazem verbo”, a escrita é feita.

Também, no poema de Patraquim, observamos a constância de algumas metáforas observadas no poema anterior:

Alta noite

O infinito

Deitado

Dormia

Eu vi o sono e a sombra

O brilho da cacimba nas cabaças oscilantes

Alvoroçando o escuro

O entrelaçado da palha

O sobreposto texto do que cresce da Terra

E as mãos murmuram

E desmedidamente trazem

Onde                                                                                                                                                 

As filhas emergem do lago das mães

As despojadas

As mães jorrando de suas bocas

A combinatória da carne

E o musgo

Eu vi

Das raparigas crescendo

Deitadas

No sono

infinitas

entrelaçadas

Ó flancos no galope aberto bosque

Ó garupas suadas

Soçobrando na Noite

Ó morte infinita

Vida

Desdobrada

(PATRAQUIM, 2011, p.157-158)

Retomando o que diz Cíntia Machado de Campos Almeida, no posfácio da Antologia Poética (2011) de Patraquim publicada no Brasil, a obra O Escuro Anterior é “um longo poema composto por oito movimentos” (ALMEIDA, 2011, p.174). Dessa forma, o poema acima seria considerado parte do último movimento, por estar separado como penúltimo poema dessa selecção.

Há muitos indícios de que o poema de Patraquim trata sobre as visões da feitura do poema. Assim, em comparação com o de Hirondina Joshua, podemos ver elementos em comum que corroboram a ideia. A começar pelo primeiro verso “Alta noite”, em que temos, assim como no poema de Joshua, a noite como um momento ou o espaço de tempo em que o processo poético acontece. Como há nas epígrafes com versos dos poetas, quando cai a noite, cai a palavra nas mãos. Entretanto, se nos deslocarmos ao quase final do poema, no último verso da penúltima estrofe, diferentemente da noite do 1° verso, temos a “Noite”, com letra maiúscula, que não representa somente um momento, mas parte fundamental para a construção do poema, por ser o lugar por onde se vai soçobrando, se perdendo, o galope da poesia. Dois registros – “noite” e “Noite” – que parecem remeter ao mesmo processo, mas em gestos diferentes. O poeta, consciente de sua escolha, torna circular a sua poesia por repetir a noite, mas com um detalhe que somente a escrita poderia trazer à vida. O gesto da poesia, “o valor vital de um gesto” (LUKÁCS, 2017, p. 65), o registro da Noite, ainda que o poema termine em morte.

Na última estrofe, a grande contradição para um poema que torna a Noite do fazer poético infinita por um gesto: “Ó morte infinita / Vida / Desdobrada”. Assim como a Hirondina, que começou com a metáfora da noite e terminou com o verso sobre tempo “instantes que se fazem verbo”, Patraquim termina seu poema com a ideia do infinito. A morte infinita, esse sintagma inteiro, com as duas palavras no mesmo verso, transita de forma mais veloz, durante a leitura, que a “vida / desdobrada”, dividida em dois versos, com a cesura entre as palavras que prolongam o desdobramento. Além da própria palavra “desdobrada”, que, também repleta de consoantes plosivas, exige ruminação da leitura, a repetição de sons secos, podendo ser o cuidado com a vida e sua necessidade de que, antes do fim, precisa de uma língua desdobrada em sua própria linguagem.

Retomando o começo do poema, a primeira estrofe apresenta-se como um bloco concreto de quatro versos. A rigidez de sua forma é fortalecida pelos sons das consoantes oclusivas [t] e [d], sons consistentes, que impedem a saída de ar e ironicamente envolvem o sono pesado do infinito. Essa é a ambientação em torno das visões do eu-poético. Em seguida, o poema segue com a declaração na primeira pessoa do singular: “eu vi o sono e a sombra”. Nas duas estrofes seguintes, o que é visto é explicado, assim como no poema de Hirondina Joshua, por seus dois pontos em “Por exemplo:”. Podemos observar como as vogais marcam o que é encarado pelo eu-poético a cada verso, como se as mudanças dessas vogais expusessem uma alteração de perspectiva até chegar, finalmente, à entrada do texto no poema, para consumação da metapoesia.

A seguir, repetimos as estrofes em questão:

Eu vi o sono e a sombra

O brilho da cacimba nas cabaças oscilantes

Alvoroçando o escuro

O entrelaçado da palha

O sobreposto texto do que cresce da Terra

E as mãos murmuram

E desmedidamente trazem

(PATRAQUIM, 2011, p.157)

Apesar de ver sono e sombra, já anunciados na primeira estrofe, o poeta direciona sua perspectiva e descreve o brilho: “O brilho da cacimba nas cabaças oscilantes / Alvoroçando o escuro / O entrelaçado da palha”. Para isso, neste verso, a vogal mais utilizada é aberta [a]. Os versos fluem, são mais abertos, com a ajuda das sibilantes, que alvoroçam também a nossa leitura. Até chegarmos ao verso “O sobreposto texto do que cresce da Terra” em que voltamos para sons mais explosivos, repletos de consoantes oclusivas: [b], [p], [t], [d], [k]. Na presença do texto como tema, o poema oferece uma reviravolta não só de imagens, mas de sons. Aqui, evidencia-se o exercício metapoético, que se constrói além da metáfora sobre o texto. Os sons também dançam nas assonâncias presentes no começo dos versos, entre as vogais [o] e [e], que elaboram, na repetição, o murmúrio das mãos que perderam a medida.

Ainda na relação entre olhar e escrita, temos outro poema de Hirondina Joshua:

Construção Horizontal

Na tangente horizontal do olhar

escrevo a matéria

num ápice desdobro o silêncio das

coisas

e sem me levantar no tempo

moldo os cometas.

(JOSHUA, 2016, p.58)

Por abordar esse olhar que desdobra silêncios, ou seja, os elementos que não são apreendidos pelo corpo, mas pela imaginação e pela afectividade, percebemos algumas considerações de Michel Collot a respeito da paisagem: “a voz lírica dá a ver o invisível da paisagem” (COLLOT, p. 53, 2013). Desdobrar silêncio é como reconhecer a “Vida / Desdobrada” do poema anterior de Patraquim, o trabalho mais extenso que o da morte infinita. Pelo título “Construção Horizontal”, em especial por sua primeira palavra, percebemos que a paisagem, o que está diante do olhar, é construída porque é vista e encarada pelo eu-poético. Ao desdobrar o silêncio, transforma tudo na linguagem da poesia.

O verso “e sem me levantar no tempo” apresenta uma noção estática que evidencia que o que é elaborado, a matéria, está interligado entre os elementos que compõem a tangente horizontal, mas também estão ocultos. São elementos que farão parte da experiência do sensível, que são preenchidos nas lacunas da paisagem pela imaginação poética, como os “cometas”. Cometas são explosivos, velozes e rumorosos. Assim como no poema de Patraquim, “Alta noite”, em “Construção Horizontal” há a descrição de um dos milagres da poesia: do silêncio, tirar um astro de brilho crescente. Sobre as percepções da poesia entre luzes e sombras, visível e invisível, Collot diz:

O outro aspecto da estrutura do horizonte manifesta, ainda mais nitidamente, que a percepção já é um ato do pensamento. Tal percepção, com efeito, não somente reúne e organiza os dados dos sentidos, mas integra o que não lhe é dado diretamente: por exemplo, a face oculta dos objetivos, seu horizonte interno. Esta dialética das coisas e de seus horizontes faz, particularmente, com que todo visível, segundo Merleau-Ponty, comporte uma parte de invisível, e isso vale também para a paisagem, que jamais se apresenta como um panorama, mas como uma cena móvel, animada por um jogo de sombras e luzes. (COLLOT, 2013, pp. 23-24)

Outro poema de Patraquim que revela a poesia como uma combustão nos céus:

E era o poema

O poema que caminhava pastoreando

A combustão de Si

O que saudava as cidades e o Olho

Da fera no bosque

Ele disse

Atenta no vaga-lume rasgando

A noite oblonga

A prismática vertigem

A matéria anterior

Absyntho negro

Eu vi

E as palavras

Caindo

O gelo das alturas

E a gutural áspera falésia

A orográfica mão

Por onde a torrente passava

E o poema

Ele

Vaticinada perda

(PATRAQUIM, 2011, p.153)

A começar pelas quarta e quinta estrofes, a metáfora do vaga-lume rasgando a noite é como o moldar cometas, de Hirondina Joshua. Nos quatro versos para descrever a noite: “A noite oblonga / A prismática vertigem / A matéria anterior / Absyntho negro”, o rasgo ocorre também na garganta de quem os lê. Retornamos ao uso de [t], [b], [g], além de uma preponderância de consoantes nasais [m] e [n], como a fixação de um grupo preciso de versos, que agrupam sua definição através dos sons. A assonância no início desses versos, todos com a letra A, a primeira do alfabeto, marcam a letra Anterior, como a matéria primeira, do Escuro Anterior, o título da obra. Visto que a obra é um longo poema composto por movimentos, como Almeida disse, Patraquim revela neste que a repetição de alguns sons, dentro do próprio poema e entre poemas diferentes, são as ondulações que nos levam a progredir a leitura. Contudo, essa progressão é só em tempo e espaço do papel, porque somos levados a tornar sempre à busca do seu título, o escuro que é anterior, pois a repetição é pontual, mas, ao mesmo tempo, leva-nos à memória dos poemas anteriores. Busca e retorno em conflito, no escuro que não poderia ser melhor representado do que pela noite.

Como mais um indício da complexa construção desse projecto poético, o poema, na combustão de si, inicia a primeira estrofe com a menção a um poema no passado: “E era”. Ao final, na última estrofe, em mais um movimento circular, já sem o verbo ser, o poema se torna a perda já prevista. Se o poema já não era no início e, ao final, é perda, o que há entre seus versos é somente poesia. 

A pertinência de determinadas metáforas na poesia de Hirondina Joshua e Luís Carlos Patraquim realça como esses poetas refazem o caminho poético da poesia moçambicana de forma original. Sobretudo, a metáfora analisada neste artigo, a da noite. Jorge Luís Borges questiona por que razões os poetas haveriam de utilizar sempre as mesmas metáforas “surradas”, largamente analisadas e referenciadas. Mas logo chega a uma de suas conclusões, que espelham o movimento dos poemas analisados neste trabalho: de que há uma dimensão da poesia que é sentida, porque é absolutamente metafórica.

Porque, no meu entender, qualquer coisa sugerida é bem mais eficaz do que qualquer coisa apregoada. Talvez a mente humana tenha uma tendência a negar declarações. Lembrem o que dizia Emerson: argumentos não convencem ninguém. Não convencem ninguém porque são apresentados como argumentos. E então os contemplamos, e refletimos sobre eles, e os ponderamos, e acabamos decidindo contra eles.

Mas quando algo é simplesmente dito ou – melhor ainda- insinuado, há uma espécie de hospitalidade em nossa imaginação. Estamos dispostos a aceitá-lo. (BORGES, 2000, p. 40)

Ao lermos a poesia de Joshua e Patraquim, observamos que há a busca pela revelação do âmago do fazer poético, através da língua em muitos de seus âmbitos: pelo significado das palavras, pelos sons, pelos jogos de enjambement e pela intertextualidade. A metalinguagem e a metapoesia servirão para que o discurso poético não seja somente o da argumentação, mas para compreender que ele também servirá à subjetividade, que o tornará diferente, mesmo que os poemas objectivem as mesmas metáforas e os mesmos períodos de tempo representados. Samira Chalhub escreve:

Um metapoema não é aurático, e isso porque sua feitura está à mostra, dessacralizada e nua. Resultado da multiplicação dos códigos, que colocou em cheque o ideal de representação da arte, o metapoema instaurou a lucidez de que a palavra, não mais mero veículo, possui a dimensão de sua própria materialidade sonora, visual. (CHALHUB, p. 47, 2005).

Assim, ainda que elaborada de maneiras distintas, a poesia de Patraquim, definida, muitas vezes, como hermética, e a de Hirondina Joshua, com tom ensaístico, colocam-se como projectos sobre a própria poesia, ao trazerem para a linguagem o seu processo de elaboração. À luz de Rancière (2009), percebemos uma partilha do sensível da escrita da metapoesia, entre o estético, o crítico e o ético na poesia moçambicana que, ainda nas novas gerações, revela um eu que se expande à comunidade, espraiado pelas mãos que murmuram em todo o país. Um traçado escrito no horizonte e no papel, entre a arte, a feitura do poema e as dedicatórias – tão comuns entre os poetas analisados –, que marca o caminho percorrido durante a noite, com flancos no galope aberto do bosque, soçobrando na Noite de Patraquim e entre a erudita dialética e a língua dos olhos, de Joshua.

Referências:

Almeida, C. M. de C. (2011). “O tempo do canto”: Desejos e memórias na poesia moçambicana pós-80. Mulemba. Rio de Janeiro: UFRJ, v. 1, n. 4, p. 92-102, jul.

___. (2014). Viagens de fora para dentro: profanações e vagamundagens de Luís Carlos Patraquim. 2014. 274 f.Tese (Doutorado em Letras Vernáculas) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

Borges, J. L. (2000). Esse ofício do verso. Org: Calin-Andrei Mihailesca. Tradução: José Marcos Macedo. São Paulo: Companhia das Letras.

Cândido, A. (2006). O Estudo analítico do poema. São Paulo: Associação Editorial Humanitas.

Chalhub, S. (2005). A meta-linguagem. São Paulo: Editora Ática.

Collot, M. (2013). Poética e filosofia da paisagem. Tradução: Ida Alves. Rio de Janeiro: Editora Oficina Raquel.

Joshua, H. (2016). Os ângulos da casa. Maputo: Fundação Fernando Leite Couto.

Lukács, G. (2017). A alma e as formas: Ensaios. Tradução: Rainer Patriota. Belo Horizonte: Autêntica Editora.

Magalhães, D. (2020). Uma teoria do verso: amor e catástrofe. ALEA: Estudos Neolatinos. Rio de Janeiro: UFRJ, v. 22, n. 3, p. 196-212, set.-dez.

Patraquim, L. C. (2011). Antologia Poética Luís Carlos Patraquim. Org: Carmen Lucia Tindó Secco. Belo Horizonte: Editora UFMG.

Rancière, J. (2009). A partilha do sensível: Estética e política. Tradução: Mônica Costa Netto. São Paulo: Editora 34.


[1] Tradução Almeida Revista e Atualizada.