Chuva a São Pedro

O céu pintou-se de preto, o vento fazia bailar as árvores que pareciam sorrir de júbilo. Papéis, sacos e outras tralhas voavam tal aves em Maio, anunciando primavera. Um monte de poeira e cascalhos foram arrancados brutalmente do chão pelo temporal que, arremessadas para o ar, cegaram-nos. Primeiramente, pensei que fosse uma dessas tempestades katrina ou Isabella, mas, subitamente, explodiu um som estridente acompanhado com uma forte rajada de vento que nos fez baloiçar, algumas pessoas aplacaram, estremeceu a terra em uníssono com os nossos corações e, daí, ouvi o grito angustiante dos morteiros 60 da ZU e das metralhadoras, a começar com a orquestra da Terceira Guerra Mundial.
Naquele rufar da natureza com seus fenómenos radioactivos, uma velha, algures, cantou:
─ Ngango, ngango, ngango, ó nvula nga teketa muxima uami nga teketa uáué nguvula io, uaue nguvula io.
Um enorme relâmpago cruzou o céu infinito e escuro que parecia um buraco, dividindo-o em duas partes, como se os deuses quisessem separar o inferno do paraíso, fotografou-nos e desapareceu no funículo do horizonte. Alguns pais tradicionais, preocupados com os filhos alimentando-os de crenças sobrenaturais, iam dizendo-lhes:
─ A trovoada não gosta do vermelho e se irrita quando o vê.
E as inocentes crianças, assustadas com o aviso, corriam desfazendo-se de tudo quanto era vermelho.
Imaginei no meu kimbo desprotegido onde os mais velhos e outros conhecedores da nossa tradição e costumes da minha antiga aldeia jogavam milho por cima de casa ou ao chão, dizendo que “o trovão é o Rei Galo Cometa, o Rei de todos os galos, que em cada colheita vinha cobrar a sua parte”. Quando alguém não o quisesse dar esta mesma parte, revoltava-se e aconteciam coisas completamente desastrosas, queimava casas e celeiros, matava criações e até famílias inteiras. Havia uma outra história que dizia que, uma vez, um certo homem feriu o seu irmão menor, porque o irmão menor tinha dado ao seu pai a melhor Pakassa, enquanto a dele nem houve quem provasse. Um certo dia, quando saíram para caçar, o irmão mais velho matou-o com o seu varapau, e a terra estava manchada com o sangue, e os deuses choravam, e quando suas lágrimas enchiam a terra, seus soluços explodiam atingido os humanos com a sua ira.
As águas, preguiçosamente, espreguiçando-se foram caindo sem nenhum impedimento, nem mesmo o sol, que, inutilmente, tentou espalhar seus raios, a deteve. Porque até as criancinhas não deixaram, puseram-se aos pulos e a cantarolar:
─ Vem a chuva, não vem o sol!
E como o reino é de quem tem alma de criança, e São Pedro ama os pequenotes, atendeu-se as preces, abriu-se as torneiras e zás.
As pessoas, nas ruas, corriam para qualquer direcção e, com qualquer objecto, tentavam agasalhar-se.
O trânsito engasgou-se, e as bichas começaram a esticar-se nos passeios, e nas esquinas tudo converteu-se em amontoados. A rádio chiava-me relatos de tudo o que ia acontecendo nas escórias das cidades. Nos bairros esfarrapados, o locutor narrava o desfile das casas arrastadas pelas correntezas que se tornavam mais forte que betões armados. Os planaltos dissolviam e vinham parar cá para baixo, entulhavam casas. Via-se crianças e animais, lixos e areias como ingredientes para a sopa, revirados, enterrados, fobulados, em fim, espezinhados.
As cargas fluviométricas com os seus electrões carregados de pequenas partículas positivas faziam explodir enormes clarões nos outros que os repeliam. O funcionário da rádio apelara a empresa de electricidade para apagar a luz.
Os clamores, os vagidos, vinham da Samba, da Boa Vista, do Cazenga e de outras partes desta “moderna Luanda”.
Ouvi ainda um ateu a murmurar:
── Jesus Cristo vem mandar calar a chuva! E salvar esta barca do dilúvio.
O escuro apagou o meu olhar, atravessou o meu cérebro e se propagou por todo o meu corpo, e tudo tornou-se escuridão: meu pensamento andava inconscientemente, as apalpadelas embatiam-se em todos os objectos da minha contemplação, achei-me entristecido nos braços das trevas.
A rádio calou-se, e senti-me trancado numa cave, privado de som, luz, ar e privado de mim mesmo.
O vento agitava fortemente os cortinados das janelas e punha tudo a descoberto: saias que deixavam expostas apetitosas ancas, verdadeiras sumaúmas da cor da madeira de Cabinda que podíamos ver de borla sem nunca podermos tocá-las por não nos pertencer. Gravatas e outros farrapos também voavam no espaço infinito e sideral. Parecia um concurso de naves espaciais ou de zaragatas. O vento é um especialista em promover o oculto.
E a chuva não tinha tempo para terminar. Choveu o dia todo, todo o dia que fez uma segunda velha, no seu kimbundu mestrado, dizer:
─ Ó, nvula ua noka!
Às 17h00, o meu passeio habitual na Avenida Revolução de Outubro a descer ao Codeme, para ver treinos de basquetebol ou andar por aí pela cidade adentro, admirando, questionando-me, conversando comigo mesmo, não aconteceu.
Então fiquei longos momentos pensativamente pensando, a ver a chuva limpar e molhar a natureza, e a minha mente também limpava, e as alimpas caíam sobre uma folha de papel em que rabiscavam ideias.
Súbito, a chuva calou-se, benzi-me em agradecimentos e fui trocar de farrapos, e pareceu-me também trocar de clima, porque tudo recomeçou, desta vez, mais forte e mais destruidora, folhas de chapas e de rosalite de papelão, tudo voava, e prolongou-se à noite toda, nem mesmo pude roubar beijos adocicados, húmidos e cálidos à minha Suzete, e, num abraço, voarmos pelo mundo exóticos, sorrindo felicidade qual estrelas cadentes brilhando nos altos céus. Pereceu o fim de tudo. (A chuva só atrapalha!).
Mas atrás do meu arrufo, estavam as crianças a banhar desprotegidas nos charcos que se formavam, vítimas da miséria e do sensacionalismo. Os corpos empotecados à ignorância pintavam quadros no meu olhar atónito. Saltavam, pinavam, e tudo repetia-se depois de cada mergulho. Senti saudades desta ignorância.
Peguei um livro e nele comecei a me ler, para depois me jogar no húmido colchão de esponja e dormir inocente como uma daquelas crianças que eu vi pinar de charco em charco.