Mentira e mulheres
Mentira e mulheres

Confissões de uma mentirosa compulsiva – parte 01

Havia demorado muito na paragem de candongueiro. Chegou ao bairro às vinte horas. Teve um dia cão. O barulho cacofónico da paragem ainda lhe dava vertigens e dores de cabeça. Atravessou a pedonal. O cheiro grosso e pegajoso de urina que ficava nos cantos cumprimentou-a, como sempre, de modo nauseante. Yanini não conseguia acostumar-se com aquele ar abafado, pesado e agoniante que o cheiro a urina em Luanda lhe transmitia.

Passavam das 20h30 quando chegou a casa. Em frente ao portão principal, de pé, estava uma vizinha, a apreciar a rua escura, meramente iluminada pelos faróis dos carros que passavam esporadicamente.

– Boa noite, tia Ana – cumprimentou-a cordialmente.

– Boa noite, Yani, tudo bem? – respondeu a vizinha com simpatia.

– Tudo sim, e com a tia? – retacou no tom daquelas perguntas automáticas, que ninguém está realmente interessado em saber a resposta depois de um dia exaustivo de trabalho, mas que é feita porque sim.

– Também estou bem, o trabalho? – disse a vizinha na vã tentativa de encetar conversa.

– Corre bem, tia. Feliz noite – cortou bruscamente, Yanini. Não tinha muita disposição para alongar a conversa.

– Feliz noite, filha.

Yanini deixou a vizinha para trás, a revirar os olhos de impaciência e irritação. Seguiu atravessando o corredor e a cogitar: há dias que o stress laboral nos desumaniza, viramos sapos, depois de termos engolido todos os sapos dos chefes. Antes atravessar a porta, Yanini sentiu o telemóvel a vibrar, e, em simultâneo, o coração palpitou. Apressou-se a abrir a porta, fechando-a com ligeira força atrás de si.

Com as mãos trémulas e levemente suadas tentou desbloquear o telemóvel para ver de quem era a mensagem, mas estava tão agitada que não conseguiu na primeira tentativa, nem sequer na segunda. Na terceira, respirou fundo, limpou as mãos e conseguiu ler. É ele, suspirou. A mensagem era curta e directa. Sem esperar por muito, digitou “ok”. Mensagem muito mais curta, mais directa, mas muito mais significativa. Aquelas duas letras encerravam uma decisão importante.

Rolou rapidamente os dedos sobre o telemóvel até encontrar o calendário. Onze de Abril. Onze de Junho. Yanini movimentava os dedos, como uma criança nos primeiros anos de escola, a ver se não se enganava com as contas, calculava o intervalo entre o fáctidico dia e o dia actual.. 61 dias, sussurrou quase imperceptivelmente, como se tivesse medo que alguém a escutasse. Vivia sozinha, estava sempre a falar alto. Mas naquele instante sentiu medo que as paredes a ouvissem.

Como se já tivesse organizado os nervos. Começou a andar de um lado para o outro no pequeno quintal que separava a casa do corredor que dava para a rua. O quintal fazia de cozinha e era o local onde ficavam os reservatórios de água, fechado com chapas de zinco e protegido por gradeamentos. Segurança. Passou-lhe na mente, naquele momento. Mudara-se de Menongue para Luanda, em busca de uma vida melhor.

Como alguém que confunde o espaço da sua doença ao espaço da sua casa. A rapariga parecia ter fobia social, então, apenas saia de casa para trabalhar e voltava a enclausurar-se nas dimensões apertadas dos dois quartos e uma sala. Orientou-se. Olhou para o relógio. Ainda resta algum tempo, murmurou para si. Desfez-se da roupa do dia, colocou uma toalha branca, a toalha da purificação dos males, como dizia sempre, e foi ao quarto-de-banho lavar o corpo da rotina laboral.

Tomou o banho mais rápido e purificador que já tomara na vida. De cabelo molhado, enquanto se limpava, olhou para as pintas do braço, seio e coxa e deu um sorriso triste. Colocou o vestido de riscas azul e branco, era necessário relembrar o início, calçou os chinelos. Estava cansada demais para qualquer sapato que fosse necessário fechar ou apertar, aqueles pés imploravam conforto.

Na sala, posicionou as duas cadeiras brancas, uma na frente da outra, separadas pela mesa. Num canto pôs o ventilador a assoprar a sala. Era chegada a hora e sentia-se a desprender-se do corpo. Parecia estar numa realidade alternativa a observar-se a si mesma. Naquele lugar, naquele tempo, à espera da verdade. Afinal, a realidade não é a verdade, cogitava. Estava hirta, mas não se sentia em si, o sonho tem essa tendência, às vezes, invade a realidade, principalmente em momentos que se consideram importantes. Pegou no telemóvel e ligou para Lueji.

Yanini conheceu Lueji num período de dor. Ambas haviam sido maltratadas pela vida quando estavam totalmente desarmadas. A dor consegue coser amizades com “linhas de ferro”, une as pessoas muito mais do que a alegria. Numa amizade partilhada pela dor as pessoas parecem sentir e falar exactamente a mesma língua. Por este motivo, há mais transparência e as verdades indizíveis são ditas com a mesma facilidade que uma criança confessa uma travessura. Eram semelhantes, a semelhança assusta porque é das sincronias mais raras da natureza por isso a amizade das duas amedrontava as pessoas. Era uma amizade clandestina e tenebrosa. Uma amizade demasiado confessável, excessivamente verdadeira. Nas relações humanas a perfeição é macabra, normal é a imperfeição. O elo entre elas fazia lembrar os gémeos uterinos, pois a ligação entre as pessoas pela dor tem algo de místico e sobrenatural, uma sincronia insuportável. Essas pessoas não se toleram, entedem-se; como se a comunicação fosse de modo telepático. Adivinham-se as intenções, adivinham-se as acções.

– O Kiese vem hoje! – disse, num tom confidencial, Yanini.

Lueji respirou fundo, como se já soubesse o que lhe seria dito antecipadamente. Conheciam-se tanto que até uma ligeira mudança na entonação denunciava-as entre si. Yanini continuou.

– Enviou-me uma mensagem a dizer que passava aqui às 22h00.

– Ok e o que pretendes fazer? – perguntou Lueji num tom sério

– Conversar… – respondeu hesitante

– Está tudo preparado para isso? – disse Lueji, como se tivesse entendido a hesitação da amiga, ambas sabiam do sentimento que pairava, como um ar pesado demais e irrespirável. Lueji a compreendia. Era do acordo tácito que tinham.

– Está sim, pelo menos eu acho que está.

– Está bem, então boa sorte. Aguardo notícias.

Yanini agradeceu e desligou. Sentou-se numa das cadeiras que estavam dispostas uma na frente da outra. Tamborilava os dedos na superfície da mesa. Suspirava e olhava para o relógio. O tempo tem vida própria, quando queremos que se apresse, reduz o passo. Quando queremos que simplesmente desapareça faz questão de nos fazer lembrar da sua presença. Agora que o primeiro espanto havia passado. Voltou a sentir-se cansada. Quando um assunto parece suspenso na vida de uma pessoa, primeiro sente raiva. Depois quer vingar-se e há quem realmente se vinga e depois vem a sensação de espera, de que a qualquer momento tudo se encaixa naturalmente, por isso, depois das consequências o que resta é esperar. E de consequências Yanini entendia muito bem.

Pegou no computador para passar o tempo e sem pensar muito colocou o primeiro filme que lhe apareceu na frente. “The White Tiger”, largou o sorriso nostálgico. Lembrou-se que era o primeiro e único filme que assistiu com Kiese no dia em que a convidou para ir a sua casa. Na verdade conversaram mais do que assistiram ao filme, a rapariga sequer lembrava do enredo ou dos actores, mas lembrava-se nitidamente de cada palavra dita, das gargalhadas, de não ter coragem de dizer que não comia carne, de ter posto água no sumo porque estava numa fase em que já não tolerava o açúcar.

Conheceram-se no ano anterior. Kiese, desde o princípio, era solícito demais, simpático demais, com tempo demais. As conversas começaram por causa dos livros, Yanini tinha-os como o seu único vício e Kiese queria sugestões de obras que não fossem das que estava acostumado a ler. No entanto, a moça conhecia-o pela escrita que achava nata, crua e pungente, chegou até a cogitar que fosse um escritor. Mas, segundo ele, escrevia apenas, não era nenhum escritor. As mulheres que não teve lhe traziam as palavras, dizia. Os amores adiados e as noites sem álcool faziam as palavras que escrevia. A expectativa da morte, a solidão que escolhia, o sol que morria todos os dias, o dinheiro que lhe faltava, os orgasmos não experimentados… tudo isso lhe traziam as palavras.

O que começou como uma conversa de livros rapidamente se tornou numa amizade sobre arte, sem pretensões, sem intelectulismos, sem exibições. Apenas o que ambos sentiam pelos livros que liam, pelas músicas que ouviam e como isso de alguma forma influenciava na forma que viam o mundo. Yanini mais sensível a tudo o que universo lhe trazia e Kiese mais pessimista, ou como dizia: realista.

As impressões tornaram-se diárias. Partilharam os contactos e as conversas sobre o mundo, as suas dores e desilusões passavam pela caixinha de mensagens do Whatsapp. Concordavam em muita coisa, discordavam de muitas mais, mas até mesmo nas discordâncias, Yanini achava sempre os argumentos de Kiese tão bonitos, que dizia a todo momento.

– Não concordo, mas é tão bonito o que disseste.

Numa destas conversas, Kiese mostrou-lhe um poema. A moça achou-o belissímo e como sempre elogiou-lhe a pena sofisticada e sensível. Kiese agradeceu ao elogio e explicou que o escreveu para a namorada. Yanini, como todas as mulheres que cresceram alimentadas pelo romantismo das publicidades da coca-cola e os contos de fada da Disney, achou que era a maior demonstração de amor que o amado fazia a amada, tal como os livros dos finais do século XVIII que lia. Amores que ardiam de febres quando não se viam e que se declaravam com rios de tinta. Ficou feliz por existirem ainda amores assim, elogiou-lhe novamente, mas desta vez pela coragem. Embora, Kiese não parecesse o tipo de homem dado a romantismo. Os seus textos eram demasiado tristes para serem lidos em dias de desespero.

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