Confissões de uma mentirosa compulsiva – Parte 03

– De onde vens a essa hora? – Yanini podia ter perguntado qualquer coisa, ma foi isso que lhe saiu, para dar algum rumo a conversa.

– Tive coisas para fazer na cidade e aproveitei passar por cá. – respondeu Kiese, em entrave.

– Ah, ok. Tu sabes que sou preguiçosa demais para cozinhar, mas fiz sumo, queres?

– Agradecia.

– Já venho.

Yanini seguiu à busca do sumo. Enquanto isso, na sala, Kiese ficou a reparar em tudo. Os detalhes não eram o seu forte, mas olhava a volta e tentava relembrar a última vez que esteve naquela casa. Quando menos esperava, viu Yanini chegar com o jarro. Pousou-o à mesa e, no copo que estava à frente de Kiese, serviu um pouco. Estava a ser cordial. Kiese agradeceu. Olharam-se num silêncio profundo. Parecia que tudo estava esmorecido. Nem o copo que ia à boca emitia som algum e o ventilador, parecia ter deixado de soprar. Por um instante, houve um silêncio universal e dois olhares com sentimentos diferentes.

– Como têm sido os teus dias? – perguntou Kiese quebrando o momento de transe.

– Não muito diferentes de antes. O trabalho continua o mesmo e o excesso dele também. E os teus?

– Iguais. E tu sabes a minha opinião sobre isso. A vida devia ser mais fácil, não devíamos trabalhar. O mundo tinha de ser um Éden. Alguém decidiu brincar com a serpente, a vida começa e acaba com aquela senhora.

– E tu sabes que ela só carrega essa culpa para o nosso género. Adão podia muito bem ter negado. Foi fraco e sem carácter, aliás, essa qualidade vocês carregam até hoje. Em vez de admitir o erro, até a Deus culpou. “A mulher que me deste” foi uma declaração muito baixa – replicou Yanini, com aspereza na voz.

– O homem não resistiu ao fruto. Fraco de espírito.

– Assim como tu. – declarou Yanini em tom acusatório.

Kiese refugiou-se para o copo e começou a mexe-lo em círculos.

– Yani, já pedi desculpas. Aconteceu. Nunca fugi da minha responsabilidade nisso. Por este motivo, estou aqui. Por que tu não admites os teus erros também? – Acusou Kiese, num tom de perdão antecipado.

– Admitir que te amo? Sim, é um erro. O maior erro que cometi na vida. Além disso, todas as outras acções foram consequências das tuas. Todas! – replicou, enfurecida. Mas controlou-se, não era o momento, nem o lugar, para gritarias. Seria uma conversa franca, sem ânimos alterados.

– Esse teu amor é muito estranho, por isso fizeste o que fizeste – rebateu Kiese com sarcasmo.

– Faça-me rir. Tu já contaste quantas vezes me magoaste?

O jovem ficou confuso, não sabia o que responder.

– Não!? – disse Yanini, num tom irónico.

– Vou te fazer lembrar. Quem entrou na vida do outro sem autorização e de modo invasivo? Quem chegou com uma intimidade que ninguém lhe deu só porque sim, só porque era Kiese demais para abordagens normais como qualquer outro ser humano? Queres que eu te faça lembrar do primeiro contacto que tivemos? Acho que nem um “oi” me deste. Bruto como és e sempre foste. E eu a achar que eras original. Sim, de uma coisa eu tenho culpa: de ser besta, burra e não te ter evitado. Não respondas, deixa-me continuar! – olhou para o rapaz de um modo autoritário, ele baixou o olhar – Eu anteriormente achava que havia confundido as coisas, que na primeira vez que falamos realmente não havia flerte algum e que provavelmente eu estava carente por isso vi o que não tinha de ver. Que as conversas frequentes que tu começavas, as ligações que tu iniciaste, as horas sem fim de cogitações sobre o mundo, eram apenas educação da tua parte. Não, não eram. Aquele excesso de atenção não era por simpatia. Era tempo para gastares com a tua namorada, não comigo. Tratavas-me bem sim, mas com intimidade demais. – fez uma pausa para recuperar o fôlego, mas deu-se conta que por causa do coração cheio, teve um vómito de palavras e não estava a seguir o guião que havia criado na sua cabeça. Logo, disse a Kiese – Espero não estar a aborrecer-te.

– Vim exactamente para te ouvir – respondeu Kiese num tom calmo.

– Sabes que nome se dá ao que me fizeste? Gaslighting. Fizeste-me duvidar do que estava a acontecer, brincaste com as minhas inseguranças. Lembras-te quando eu te enviei a mensagem a confessar-te a minha paixão por ti? Eu lembro, foi numa quinta-feira às onze da manhã, estava no trabalho. Na noite anterior tinhas-me lido Poema em Linha Recta. Eu estava feliz. De repente senti uma angústia, um aperto no coração. Não era certo sentir aquilo, sentir-me feliz. Criei coragem, mas antes fui ao quarto de banho vomitar. A minha vida emocional é muito física, as minhas tristezas e alegrias revelam-se no corpo. Por isso, vomitei. Estava angustiada e precisava esvaziar o coração cheio que tinha. Lembro-me de te pedir desculpas, te pedir perdão por me estar a apaixonar. Tu sempre foste surdo às minhas palavras e eu devia ter notado naquele momento. Ignoraste a minha súplica, o meu perdão e trataste-me como um lixo. Sentiste raiva dos meus sentimentos. Eu não te estava a pedir em namoro, simplesmente a confessar-te o que sentia. Por mais que fosse dedicado a ti, era meu, demasiado meu e tu não respeitaste isso. Disseste-me que estava a confundir, que não tínhamos passado de conversas sobre literatura. Não era verdade, mas eu aceitei que sim. Tinhas todo o direito de me rejeitar, mas não tinhas o de macular os meus sentimentos, chegaste ao ponto de me ameaçar. Sempre foste um bruto. Respeitei-te, apesar de sentir que não merecia o modo como me trataste, admirei-te. Achei-te um homem íntegro. Por isso fui-me embora.

– E eu pedi desculpas por isso, Yani.

– Sim, pediste, para me desrespeitar logo a seguir. Eu realmente gostaria de saber o que estava a se passar na tua cabeça. Sempre tive muito medo de te perguntar. Afastei-me, segui a minha vida, ou tentei seguir, sei lá. Mas eu estava bem. Estava a passar por um período mais longo fora da depressão e da ansiedade. Cogitei a possibilidade até de estar apenas com ansiedade e sem depressão. Voltamos a ter contacto. Eu realmente pensei que havia sido idiotice minha, que tu eras bom, honesto e não fazia sentido algum me afastar, até porque sempre lidei bem com rejeições. Eu aceitava o cantinho que havias guardado para mim na tua vida: amizade. Aliás, acho que sempre te olhei com muito amor. A paixão não é cega como dizem, ela vê mas decide ignorar. Eu sentia que havia algo de errado nessa tua necessidade de afirmar sempre que eras honesto. Todos os sinais estavam aí. Essa coisa de ler livros e achar que as pessoas se comportam como as personagens é que me desgraçou. O teu comportamento para mim deixou de soar esquisito, passou a ser peculiar, original. Talvez fosses tão atencioso assim com todas as tuas amigas, eu pensava. Tu tomavas as decisões e eu só obedecia. Para ir visitar-te a tua casa o convite partiu de ti. Para vires à minha tu mesmo te convidaste. Lembras-te? Eu havia desmarcado o encontro porque não ficava bem por ser dia dos namorados. Falando nisso, a minha mãe sempre me disse que eu era demasiado influenciável e talvez por ser verdade é que eu relutava sempre. Batia o pé, dizia que não. Foi a tua amiga, a Débora, que eu achava minha amiga que apoiou muito esse amor clandestino que nasceu entre nós. – recuou – bem, amor não, eu sou a única que amava aqui. Traição. O nome certo é traição, ou melhor, amor da minha parte e traição da tua. Eu estava livre, quem devia explicações eras tu.

Yanini levantou-se como se estivesse cansada de falar sentada e quisesse dar uma palestra. Kiese também se levantou. Encostou-se num dos cantos da parede. A luz rosa destacava-lhe apenas alguns contornos do rosto e da roupa. Olhou para o relógio e viu que eram quase meia- noite. Yanini tinha o rosto pálido, os olhos envidraçados, maiores do que realmente era, os lábios secos, mas a placidez dava-lhe um ar angelical como se fosse um anjo no inferno. As curvas do corpo tornaram-se mais acentuadas. Yanini sempre parece mais bonita em momentos de tensão.

– Nunca neguei que traí. Até mesmo na mentira fui honesto – respondeu Kiese, com os olhos dirigidos ao chão.

– Sim, a tua táctica é muito simples: não diz, mas se lhe perguntam também não nega. Quando voltamos a falar, o único momento em que falaste da tua namorada, estávamos a falar ao telemóvel e tu disseste “Eu tive uma namorada que estudou…” notei logo que era ela. Nós dois entendemos de semântica, tu escreves, eu leio. Sabes por que desmarquei o nosso encontro naquele dia?

– Não! – respondeu categoricamente

– Por que desabafei com a Débora, tua amiga que eu achava que fosse minha, e disse-lhe que continuava apaixonada por ti, mas não tinha a certeza se te tinhas separado. E isso me angustiava. Adivinha só o que ela me respondeu? Que vocês haviam decidido se separar amigavelmente. Tive uma hora de esperança e felicidade. Uma hora. Mais tarde, ela volta a ligar a dizer que falou contigo e vocês haviam voltado. Como nunca tive sorte mesmo, aceitei o meu fado e decidi desmarcar o encontro que tu havias marcado. Foi a única vez depois de termos reiniciado as nossas conversas que você admitiu que ainda estavam juntos. Tu jogas e eu infelizmente só me dei conta depois de toda a confusão. Ainda assim tu remarcaste para o dia a seguir. Por que não evitaste, Kiese? Por que não?

– Podia ter feito muitas coisas. Podia ter evitado como na primeira vez. Podíamos ter falado menos, e ignorado um ao outro, mas não aconteceu. São muitas coisas que deviam ter sido feitas e evitadas, mas aconteceu. Agora estamos aqui – respondeu, de um único fôlego, como se estivesse à espera daquele momento para dizer o que sentia. No entanto, recobrou o ar calmo e calou-se.

– E eu sempre passiva. Tu uma vez confessaste que davas conta quando eu te evitava e fingias não te dar conta para continuar as conversas. Um dos teus pecadilhos que transformaram tudo neste grande pecado. Tu, Kiese, não amas com o coração e sempre tiveste muito orgulho disso. “Eu não me apaixono facilmente. Amo com a mente” enchias o peito para afirmar isso. E a mim assustava. Sempre te confessei. Então, nada do que me fizeste foi por impulso, tu sabias o que estavas a fazer. Principalmente, tu sabias o quão emotiva era e como isso seria facilmente maleável por ti. Foste pretensioso. Eu te perdoaria se pensasses com o coração. Eu te perdoaria se tudo o que aconteceu entre nós fosse fruto do teu impulso. Haveria pureza se não fosse calculado. A emoção é perdoável. A razão não. Tu fizeste de propósito Kiese e nem precisas te dar ao trabalho de negar. Por isso, me vinguei!