Da esplêndida alegoria da caverna de Platão a tremendas trivialidades de Chesterton

Era de esperar, a par da evolução técnica e industrial das sociedades, o aprimoramento da nossa postura moral enquanto indivíduos sociais – e assim o é em certo sentido –, mas o que temos vindo a assistir ultimamente parece tomar um rumo contrário, vagaroso, em relação às nossas previsões primárias. Vivemos em sociedades evoluídas como nenhuma outra na história da humanidade e realizamos feitos dignos de serem considerados como milagrosos por nossos ancestrais. O homem, com sua fome insaciável por conhecimento e sua mania de grandeza, pôde até mesmo desafiar as leis naturais da física e escalar os invisíveis degraus da gravidade, timbrando a sola de seus pés na superfície da Lua – mesmo que afinal não se perceba muito bem a finalidade e utilidade deste feito –; somos hoje capazes de articular as mais refinadas teses sobre o universo; mas, como o alpinista que se esquece do seu objectivo e escala as montanhas pelo simples facto de estar escalando (ou de existirem montanhas), os homens vão seguindo atrás da (r)evolução contínua pelo simples facto desta ser possível e esquecendo-se do objecto de sua motivação inicial: o homem. Ou mais propriamente o bem-estar deste. E aí reside parte principal do problema: concentramos nossos esforços no sentido de prover uma sociedade tecnológica e cientificamente evoluída, porém esquecemos de, no processo, cultivar as virtudes sem as quais não se pode nem mesmo falar de uma vida em sociedade, visto que sociedade não é apenas um agrupamento anárquico de homens, mas um ajuntamento fruto de necessidade vital fundamentado em códigos de conduta, convenções, adequações e etc., códigos esses que não são sempre racionáveis, entretanto, indispensáveis.

Entusiastas, acreditámos que, quanto mais evoluídos estivermos e mais inteligentes nos tornarmos, mais próximos da felicidade plena estaríamos. Temos observado, ao contrário, um progressivo abandono das virtudes que coordenam nossos padrões morais, substituídos por um profundo cinismo e cepticismo em relação à própria necessidade da vida em sociedade enquanto tal, por parte de civilizações moderníssimas.

Nossas crianças estão a aprender, à tangente, hipotenusa e cosseno, o discurso do método, a dialéctica, antes mesmo de aprenderem a dizer “por favor” e “obrigado”. Resultado? Seres humanos autómatos, insensíveis, endurecidos, apáticos e indiferentes às desgraças ou alegrias colectivas, aprisionados numa grotesca forma de autodestruição a que, por desencanto, se submetem.

Por isso, precisamos de uma nova revolução, a revolução hashtag, o homem de volta a terra para encontrar seus semelhantes e com estes conviver, redescobrindo o valor das coisas simples e belas da vida, a melodia refinada das relações humanas, a única capaz de comunicar com o minúsculo recanto suave que há no coração dos homens; fazer florescer os ecos dos sons do amor, atingindo-o no pequeno núcleo macio de sua sensibilidade e por aí despertá-lo, tirá-lo da apatia e da hibernação autómata. Precisamos, antes de estudar Aristóteles e Platão, reaprender a dizer “obrigado” e “bom-dia”.

Só por isso é que as maiores e piores atrocidades cometidas na história da humanidade foram protagonizadas por mentes brilhantes que dominavam conceitos complexos, mas que desconheciam (ou que conhecendo, desprezavam) totalmente a natureza das coisas simples e fundamentais da vida. Fundamental não é sinónimo de complexo, pois um homem comum pode viver uma vida plenamente feliz sem conhecer a complexa lógica da trigonometria, mas é bastante improvável que um prestigiado matemático tenha uma vida domiciliar e comunitária (isso presumindo que tenha uma) minimamente satisfeita sem dominar os misteriosos segredos do “bom-dia”, “obrigado” e “nada por isso”. Tremendas trivialidades do quotidiano, porém indubitavelmente essenciais para a existência deste. Ao procurar percorrer o implacável caminho da busca pelo conhecimento, é importante velar para que não percamos a trilha do caminho que nos leva de volta a nós, para que não nos igualemos àquela família que vai jantar comida caseira num restaurante ou ao homem que se esconde no rio para fugir da chuva. Apesar da sua importância indispensável, as profundas reflexões filosóficas não são as engrenagens que movem o motor da vida, de facto, não fazem nem parte das mais comuns e triviais necessidades da vida quotidiana regulada fundamentalmente por uma lógica tão menos académica, mas não menos profunda, mesmo em sua mais elevada superficialidade – como o tedioso e enfadonho(?) hábito de jantar à mesa, em família, todos os dias. O discurso do método perde para a lógica do “bom-dia”, “desculpa” e “obrigado”. Quando não, são os homens que fatal e invariavelmente perdem.

Se desejamos obter um vislumbre, o mínimo que seja, de elevação desta nossa vivaz apatia afectiva, faz-se necessário colocar em segundo plano as profundas reflexões sobre a esplêndida alegoria da caverna de Platão, e perseguirmos invictos as tremendas trivialidades de Chesterton.