Entre o crepúsculo e a chuva, uma mulher sem nome

Caía a noite sobre os seus olhos tão vagarosamente como se não quisesse se fazer chegar, espreitando pela vestidura do céu antes de dar a conhecer seu rosto. Do outro lado faz-se chuva, mas cá dentro tempo é generoso. Para lá das paredes, a rua era calmaria, por ela passavam, ocasionalmente, pessoas em movimentação tão tímida que quase não se davam por elas mesmas. Aqui o crepúsculo é onde o dia se faz alento e a noite se revela sonho. Ela prostrava-se diante da janela envidraçada que dava de cara com a relva que se estendia entre as duas entradas: a da residência e a do lar. É o lar uma questão de espaço ou de agregado? O seu agregado são só ela e suas coisas, suas coisas e ela; de tão entrelaçadas que estão suas coisas se confundem com ela, ela se confunde com suas coisas chegando mesmo a não haver coisas, mas só ela, e não havendo ela, só suas coisas eram, ou mesmo ambas se anulam mutuamente no cruzamento de suas existências [pese embora, Descartes discorde, suas coisas existem mesmo sem pensar].

Eu, saindo do quarto, dirigi-me até ela, a envolvi nos meus braços ainda desacreditado da sua realidade, nenhuma palavra me saía da boca, comunicava-lhe pelo o processo orquestrado, pelo meu diafragma cujo som, saindo-me pelas narinas, soprava directamente nos seus ouvidos. Não sabia se me tornara já uma de suas coisas ou um novo tipo integrante desse agregado, embora todas essas pretensões podiam ser exageradas para alguém que passara apenas uma noite nesta casa, mas verdade é que fora como uma eternidade. Não. Uma só não. Duas: a que até aqui se passou e a que neste mesmo instante começa. Uma só eternidade é pouco tempo para caber nela. esta mulher que tão logo encontrei, sabia que nunca chegaria a conhecer. O crepúsculo, que agora nos testemunha, que mescla dia e noite ou ainda o eclipse onde sol e lua se casam, nunca poderia ser capaz de conceber a simbiose desses dois desconhecidos que agora se abraçam, sem nada falar, virados para a janela. Ela entreanda seus dedos pelos pêlos eriçados dos meus braços envoltos no seu corpo enquanto a minha cadência de inspira-espira se acelera juntamente com as contracções do meu músculo cardíaco. Vira-se para mim, e seus olhos cegam os meus, que se tornaram agora apenas um espelho para o que ela me revelasse. Transpassei minha mão trémula pelo seu rosto, ela sorriu e por um instante, do lado de fora, a chuva que vinha com a noite deu lugar a um sol matinal. Soube então: o dia nasce no seu sorriso.

Segurou-me a mão e levou-me a passear pela sua casa que se confundia com o mundo, onde entrei na noite anterior sem saber como e fiquei, desde então, com ela no seu quarto. Seu chão remontava a um tempo em que a humanidade não tinha ainda história, via nele o nascer de um amanhã colorido e festivo, um amanhã que pode se dizer hoje e até mesmo um ontem relativamente recente. Pelas paredes tinha estampado um casamento de cores que se comunicavam e nos comunicavam. A sala mostrava-se pintada por Vincent Van Gogh e o tecto projectado por Da Vinci. No quarto em que já não entrámos, nessa viagem pela casa, lembrei-me de ter visto a assinatura de Picasso e Claude Monet. Tinha ainda telas espalhadas, desde Rembrandt, Michelangelo a Dali e Goya. No piso superior, uma vasta e diversa biblioteca apresentava-se-me, podia encontrar-se ali as vozes mais nobres que a morte silenciou, mas o tempo não calou.

Poupo-me do trabalho de mencionar obras ou autores que aí se encontravam para não ser injusto com os milhares demais, como já fui na descrição anterior, e também porque conheço muito pouco da enormidade dessa biblioteca. Essa mulher, com quem passei a noite e também já quase um dia, parece ter dentro de si todos os tempos por que a humanidade já atravessou. Quando a questionei se já havia lido todos aqueles livros, ela respondeu: “eu sou todos esses livros”. E a sua voz, que ouvia então pela primeira vez, teletransportou-nos,¬ com o seu som, para um outro plano; ela disse-me que era apenas outro compartimento de sua casa, mas eu sentia-me numa outra dimensão, num universo paralelo. Nesse outro compartimento ou outra dimensão, o som era tudo e tudo era som, mas um som que também tem silêncios. O som era a sua voz, e a sua voz era o som, sincronizados e intercalados como se de um só se tratasse, como se não houvesse, por isso, sincronia e intercalação. Perigando ser novamente injusto com uma multidão de génios musicais, é-me imperativo dizer que, dali ou dela, se ouvia Bach e Mozart, Beethoven e Haendel, Wagner e Haydn, etc, etc, etc… sem disprimor nenhum a musicalidades mais modernas e de outros lugares que também eram imperiosas naquela sala. Quando questionada se ouvia mesmo todas aquelas músicas, a sua resposta era invariável: “eu sou todas essas músicas”.

Voltei a tocar-lhe o rosto, e ela segurou-me a mão, quanto mais se mostrava mais a desconhecia e, com isso, fascinava-me mais. Sorriu-me novamente. Não saberei dizer se, por isso, lá fora a chuva e a noite já instaladas voltaram a dar lugar a um sol matinal a esta outra dimensão, a este universo paralelo, que ela insistia em dizer que era só mais um compartimento da sua casa, mas onde eu não me vi chegar e nenhuma ideia faço do caminho até lá. Dali, dizia já não me era possível ver o que se passava lá fora. Mas já não precisava de confirmação, eu já sabia: o dia nasce no seu sorriso.

– Quem és tu? – perguntei hesitante.

– Eu não sou… Quer dizer, sou um vir a ser.

– Como nos conhecemos? Como vim aqui parar?

– Sempre estive em ti como o teu próprio fôlego, mas só agora começas a me descobrir. Por necessidade e também por prazer. E não vieste cá parar, porque sempre estiveste aqui, mas não me vias com os olhos de ver, só agora que abres os olhos de sentir é que me manifesto a ti, em ti e através de ti.

– Tens pelo menos um nome?

– Dá-me tu.

– Não sou capaz.

– E nem tens de ser.

– O que fazes da vida?

– A vida me faz.

– Não te entendo, mas sinto-te. E gosto disso.

– Então já começas a me entender.

Calámo-nos, demos os corpos um ao outro, as bocas se acasalaram tentando suspender o universo e adiar o mundo. Lá fora chove, ouve-se cá dentro. Alheio-me à vida e já sou inteiramente desta mulher sem nome, talvez parte dela, uma das suas coisas. Ela era som e palavras, cores e forma, luz e movimento, mas também silêncio. Ela era as suas coisas e suas coisas eram ela.