Literatura infantil angolana: olhando o passado, perspetivando o futuro. A censura inconsciente das temáticas nos livros para as crianças. (1ª parte).

Em conjunto com outras manifestações culturais, como o teatro, o desporto e a música, o processo de estruturação e construção de nação forjado numa identidade nacional, deram sempre particular importância ao papel da Literatura. Concretamente, a literatura é inerente à revolução desde os inícios e tem um carácter marcadamente político e ideológico. Os alicerces da preocupação literária no país foram apresentados por um grupo de intelectuais angolanos na década de 50 em que predominava a afirmação dos valores nacionais, formal e tematicamente, como resposta à negação sistemática dos valores do povo angolano pelo colonialismo, como se lê no discurso de Agostinho Neto, aquando da fundação da UEA: “Hoje, a nossa cultura tem de ser reflectida tal como ela é, sem deformações, sendo ela própria o motivador da literatura. […] Quero dizer que esta União de Escritores é chamada a desempenhar um papel importante na nossa Revolução”. (apud FERNANDES, 2008).

A violência, a guerra civil, as lutas ideológicas e políticas e a instabilidade marcaram a fundação de Angola como estado independente. A literatura infantil em Angola, antes da independência era escrita a partir de uma base temático-imagético da colónia portuguesa, basta olharmos, por exemplo, os escritos de Lília da Fonseca. Com os ventos independentistas, a literatura infantil angolana dá uma volta tremenda, e fruto das políticas governamentais começaram a surgir, de forma galopante, varias obras infanto-juvenis: A Caixa, de Manuel Rui (1977, primeira obra infantil do pós-independência); Nas florestas os bichos falaram, de Eugénia Neto (1977); As aventuras de Ngunga, de Pepetela (1972).

Nesse período, a imprensa teve um papel de extrema importância na divulgação de obras infantis e no incentivo ao hábito e o gosto à leitura. Curiosamente, boa partes dos autores que viram publicados suas obras eram funcionários públicos, a título de exemplo, Octaviano Correia, Cremilda Lima, Gabriela Antunes e outros. Nessa época, as temáticas trazidas nas obras se prendiam, essencialmente, em realçar os valores identitários e culturais, a bravura e o respeito pelos símbolos nacionais. Essas temáticas influenciadas pela oratura, são visíveis em várias obras que surgiram no século XXI, tais como nas narrativas de Yola Castro, Jonh Bela, Kanguimbu Ananaz e Ondjaki.

Hoje, assistimos o desmonte das grandes cadeias de livros na mesma velocidade da crise, temos a substituição dos livros infantis, por jogos, brinquedos, internet, televisão e outros produtos similares. Vemos os poucos espaços existentes se transformarem em expositores dos produtos mais variados, cada vez mais distantes do livro em questão. A criança de hoje, não é a criança dos anos 70 ou 90, estamos em 2021, os anseios, as influencias, os desafios são outros. O passado é importante, infeliz é o homem que o despreza, aliás, todo homem está suspenso numa trialidade passado, presente e futuro. Outrossim, a literatura infantil angolana, hoje, enfrenta novos desafios, o que convoca os seus fazedores a arriscarem em novos formatos de modo a abrir novos campos e evitarem às fórmulas que até aqui já deram certo. A nova geração de autores precisa encarar e transmitir temas contemporâneos, libertar-se da censura inconsciente, pois, esta é a era do menino Rufino que perdeu a vida por defender sua família diante a arrogância canina do sistema político; esta é a era das crianças que morrem por malária; das crianças que têm o contacto com o mundo digital; das crianças que reclamam, brigam, reivindicam e sofrem todo tipo de violência; está é a era da democracia e da intolerância; estamos na era da terceira república. A maior parte dos livros infantis do passado funcionaram como instrumento ideológico, “O colonialismo, as lutas pela Independência, os problemas internos oriundos das guerras civis provocaram sérias modificações na arte de narrar. Com a liberdade conquistada, tornou-se importante ensinar crianças e jovens a colocarem dentro de seus universos imaginativos o real das lutas guerrilheiras. […] A euforia pós-independência, as críticas à colonização portuguesa são temas que aparecem recorrentemente nesta literatura infanto-juvenil, publicada em grande parte depois de 1975. Contudo, sem dúvida alguma, só a partir das décadas de 1980, 1990 e 2000, principalmente com a paz, é que uma nova literatura infanto-juvenil começou a surgir e ser editada em Angola […] (Secco, 2007, p. 9-10).”

A literatura possibilita ao leitor, com distanciamento e, simultaneamente, proximidade, vivenciar as experiências das personagens, expressando seus medos, angústias, conflitos e outros sentimentos que, não raro, temos dificuldade em compartilhar, externar, dialogar sobre. A nova geração de autores têm a missão de construir suas obras longe das ideologias, e permitir que as crianças sonhem no seu tempo, enfrentem os medos do seu tempo, vençam as angústias do seu tempo e desenvolvam a imaginação, como argumenta Regina Zilberman, “A leitura estimula o diálogo, por meio do qual se trocam resultados e confrontam-se gostos.” (2008, p. 17).

A formação do leitor-literário requer abertura para o diálogo. Ao Trazer obras literárias que tematizam os conflitos e dramas humanos possibilita os leitores (ainda que crianças) pensarem sobre suas próprias vidas e ressignificá-las. A construção de um bom cidadão passa também pela livre absorção da linguagem literária.

Longe da censura inconsciente e consciente, a nova geração de autores tem o compromisso de formar uma literatura infantil capaz de criar um leitor sensível, crítico e proficiente, capaz de preparar as crianças para os enfrentamentos que a realidade nos coloca, apoiados pela fruição estética, o diálogo e as trocas de experiências de vida que a literatura infantil pode oferecer.

Referências bibliográficas

Fernandes, C. (2008). Surgimento e Desenvolvimento da Literatura Infantil Angolana Pós-Independência”. V Encontro de Literatura Infantil e Juvenil, Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Disponível em https://www.ueangola.com/criticas-e-ensaios/item/301

Secco, T. (2007). Entre fábulas e alegorias: ensaios sobre literatura infantil de Angola e Moçambique. Rio de Janeiro.

ZILBERMAN, R. (2008). O papel da literatura na escola. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/view/50376.