Literatura, poder e resistência

O texto que se segue integra a pesquisa que estamos a desenvolver sobre a génese do Jornal Cultura, na qual pretendemos abordar a sua contribuição para a afirmação da literatura angolana na década de 50.

Em função da pertinência do tema, achamos por bem partilhar, neste espaço, parte da abordagem sobre o fenómeno literário na perspectiva histórica, sem pretensão alguma de fazer crítica literária. Contudo, reconhecemos haver interligação entre a crítica literária e a crítica histórica.

Uma vez que este assunto não constitui o foco da sua abordagem, admitimos a ideia que a literatura seja um meio de representação da realidade na qual o escritor e o leitor estão inseridos. Recriação da realidade, a literatura tem o poder de dirigir e reter a atenção do leitor para o objecto apresentado numa determinada perspectiva.

O seu poder manifesta-se igualmente na produção de um discurso hegemónico, colonial, de um lado, e, do outro lado, na criação de discurso literário anti-colonial, portanto, de resistência de um povo cuja voz, silenciada pelos escritores coloniais, ganha audiência.

O discurso hegemónico é aquele que permanente e invariavelmente exalta a figura do colonizador e a sua obra, sintetizadas no termo civilizar, realizada no seio dos povos supostamente incivilizados. A criação e a apresentação da imagem destes configuram já um acto de dominação colonial e de mobilização[1] em torno de um projecto de dominação – o colonialismo – ao qual a literatura esteve associada através do “enselvajamento”, entendido, aqui, como “a negação ou a debilitação do colonizado” ou, se quisermos ainda, a “criação de um conjunto de estereótipos” sobre o africano em quem não se reconhece capacidades intelectuais (PINTO, 2006, p. 42).

A dogmatização da barbárie encerra toda uma narrativa colonial baseada num conjunto de teorias produzidas, principalmente, no século XIX por filósofos e cientistas europeus como Hegel, Levy Bruhl, Arthur Gobineau, entre outros, que postularam a inexistência de civilização em África e a inferioridade do negro-africano.

Ora, o processo de apropriação (BOSI, 2002, p. 97)[2] da escrita pelos angolanos – que, curiosamente, ocorre no século XIX, particularmente, no último quartel deste em que foi consagrada a partilha de África[3] – possibilita a contestação ao poder colonial e, acima de tudo, o resgate e a perpetuação da cultura angolana, predominantemente oral.

Realizava-se, assim, uma obra consubstanciada na recolha e salvaguarda da cultura angolana que ficaria (NETO, 2009, p. 16) imortalizada na História de Angola, que, através dos seus filhos, encontrava um novo meio de resistência ao poder colonial.

Na verdade, a segunda metade do século XIX e, principalmente, o último quartel deste, constitui o início do processo de resgate do património cultural angolano e, apesar da ambiguidade discursiva, da produção literária alicerçada na cultura angolana por Joaquim Dias Cordeiro da Mata, cuja obra é constituída por Filosophia Popular em Provérbios Angolenses (1891), Cartilha Racional para Se Aprender a Ler o Kimbundu (ou língua Angolense) Escrita segundo a Cartilha Maternal do Dr. João de Deus (1892) e o Dicionário Kimbundu- Português (1893).

Este intelectual considerava que era necessário um renascimento africano em Angola por via da legitimação das línguas africanas, como o kimbundu, por meio das quais seriam transmitidos e apreendidos valores éticos e filosóficos (HAMILTON, 1975, p. 53).

A criação de um texto literário angolano configura um acto de afirmação da cultura, expressa pela língua, de uso proibido pelo colonizador, e constitui uma das etapas da luta pela conquista da independência cultural, total.

Outrossim, a arte de escrever permite a restauração da imagem do colonizado, o africano, deturpada pelo colonizador. De acordo com acordo com Lígia Mica (2016, p. 74), os escritores angolanos “trouxeram para a cena o homem [angolano] e a perspectiva angolana, assim como as tensões existentes nas relações entre colonizados e colonizadores”.

A afirmação da literatura moderna angolana, tema que será desenvolvido neste trabalho, ocorrerá num contexto marcado pela intolerância, perseguição e repressão contra os escritores angolanos que, apesar de “presos e acusados de actividades subversivas”, conservaram o espírito combativo das gerações de escritores que os precederam.


[1] Neste caso, da sociedade portuguesa.
[2] Corroboramos com a ideia deste autor, segundo a qual a apropriação das armas das armas culturais do colonizador pelo colonizado permite-lhe sobreviver, não havendo assim vitórias e derrotas absolutas, tanto de um quanto de outro.
[3] Através da Conferência de Berlim (1884-1885).