Se pensarmos que a nossa cosmovisão seja criada no «nosso» microcosmo do qual ‹‹nunca saímos», se o associarmos à tudo quanto nos rodeia, conhecemos e diz respeito a nós, o “estrangeiro” será certamente um mundo inexistente, para alguns, e com o qual muitos não se identificam.
Aos factores mencionados adiciona-se a indiferença, a distância (física e psicológica) que separa uns e outros e a sobrevalorização do “nacional” em detrimento do “estrangeiro”.
Comparado a um objecto encoberto nas trevas e excluído da memória, o “estrangeiro”, ou desconhecido, ganha espaço no imaginário quando revelado na obra de um escritor.
O vivido, as vivências, experiências, apontamentos, anotações, diários e a imagem apreendida conformam a memória que informa o processo criativo.
O efémero – irrepetível talvez seja o termo mais adequado para referir aquilo que recebe significado e valor – subsiste na memória sob a forma de “vestígios” (ALBERTI 2004:33-34) sobre os quais se constrói a obra literária. Deste modo, o processo criativo desenrola-se com a acção da memória, a fixação e a permanência do instantâneo.
Escrever é de facto um acto de criação a partir do preexistente, um processo de transformação da matéria, de produção, preservação e transmissão da memória, um modo de recriação da imagem por meio da palavra.
Ancorada na geografia, a obra de um escritor – vemo-lo como o emissor de imagens de uma realidade que desconhecíamos – é um testemunho de factos registados durante a sua permanência (curta ou prolongada) num País, cidade, município, vila, etc.
Viajando com as palavras, ultrapassamos a fronteira que nos separa (va) do outro mundo, penetramos no seu interior, ficamos com a sensação de sermos parte deste mundo e identificamo-nos com ele.
Queiramos ou não, o escritor “reflecte sempre em cada um dos seus actos, a realidade ambiente” (NETO 2009:17), de maneira que a representação da realidade implica conhecimento da mesma.
De acordo com Agostinho Neto (2009:17), para o escritor angolano, a interpretação da existência não deixa de estar submetida a regra mencionada anteriormente.
Enquanto alguns escritores angolanos retiram da tradição oral material para a produção literária, escritores como José Mena Abrantes (2011:162-163) e José Eduardo Agualusa (apud LABAN 2011:139) escrevem algumas das suas obras baseando-se na realidade dos países para aonde viajam frequentemente.
Na Curva do Cão Morto, obra da autoria de Mena Abrantes (2011:162-163), retrata aspectos relacionados a Frankfurt, Lisboa e Luanda. O escritor viveu em Portugal durante oito anos e em virtude do controle exercido pela polícia política portuguesa exilou-se na Alemanha Federal.
Durante esta fase da sua vida, o escritor conheceu grande parte dos países da Europa Ocidental, tendo após o seu regresso a Angola (onde trabalhou como jornalista) conhecido a maioria dos países africanos, da Europa do Leste, da Ásia e da América do Norte e do Sul. A sua obra resulta da transformação do material extraído nos países para aonde viajou antes da proclamação da independência nacional.
De nacionalidade angolana, José Eduardo Agualusa (apud CRISTÓVÃO 2011:139) considera-se luso-afro-brasileiro em função da sua vivência em Angola, Portugal, Brasil e Moçambique.
Tendo em conta a importância atribuída à nacionalidade literária de um escritor, e em função do conceito de Literatura Angolana defendido por alguns críticos, a obra de José Eduardo Agualusa tem sido excluída da Literatura Angolana por alguns círculos literários.
Com efeito, a obra literária pode ser o retrato dos países com os quais o escritor mantém contacto e se identifica, o que não significa que ele tenha rejeitado a sua nacionalidade.
A nacionalidade literária é uma questão que tem importância apenas em “países novos” e que na perspectiva de Michel Laban (2011:138), não é “crucial”, pois ao longo da história da literatura encontramos muitos “escritores transnacionais”, como Kafka, Joseph Conrad ou Becket.
Logo, “a obra de um escritor pode pertencer a vários países”.
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1. O termo abarca tudo, incluindo a Literatura, que é produzido num país.
2. Em 1974.
Bibliografia
ABRANTES, José Mena, «Depois de Descobertos, Os Nossos Novos Caminhos Só Podem Ser Encantados». In: CRISTÓVÃO, Aguinaldo, Pessoas Com Quem Falar. Luanda: União dos Escritores Angolanos & Aguinaldo Cristóvão, Tomo III, 1ª edição, 2011, pp.143-172.
ALBERTI, Verena, Ouvir Contar – Textos em História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 2004.
LABAN, Michel, «As Literaturas Provenientes dos Países Ricos Têm Maior Aceitação». In: CRISTÓVÃO, Aguinaldo, Pessoas Com Quem Falar. Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1ª edição, 2011, pp.132-142.
NETO, Agostinho, 1979,… Ainda o Meu Sonho … (Discursos sobre a Cultura Nacional). Luanda: Arquivo Nacional de Angola, 2009.