NA TRILHA DOS INADAPTADOS (TOMO I)

Trilhar com o percurso das mãos este mundo de palavras de constantes mutações.

A literatura enquanto arte transpõe, através da criatividade, uma realidade humana que esteticamente representa o mundo. Funde os sonhos e as ideias que se materializam no texto e, devido ao seu sistema de linguagem e da sua construção dialéctica, confere-se-lhe o grau de ficção. Ela é taxativamente um mundo de constantes mutações, de constantes questionamentos, procura sistematicamente o seu próprio espaço, a sua própria condição de vida e vai se ajustando ao contexto que se lhe impõe.

É nestes termos de ajustamentos estéticos e de surgimentos de um conjunto de novos prosadores e de alguns que já têm segmentado a sua prosa no mercado angolano, que conduziremos a nossa linha de abordagem a partir da colectânea Trilha dos Inadaptados. Uma colectânea literária de contos, da Editora Palavra & Artes, organizada pelo escritor Luefe Khayari, publicada no mês de Outubro do ano findo, na Mediateca de Luanda. A trilha integra 21 autores, composta por 138 páginas e uma nota introdutória do organizador.

Trilha dos Inadaptados é daqueles projectos que nos faz olhar para a literatura angolana com os olhos de esperança, esperança de que cada geração, no seu devido tempo, com o percurso das mãos, trilhará com palavras este mundo de palavras de constantes mutações e imposições estéticas. A literatura angolana produziu, desde a sua fundação, mais poetas que prosadores, tendo encontrado mesmo nos períodos que se seguiram um vazio que não foi preenchido com as poucas obras de escritores que se contam pelos dedos das mãos, que foram publicando nos intervalos dos anos. Nos últimos sete anos, foi surgindo projectos colectivos e individuais que atribuiu à literatura outro modus vivendis, outro estatuto, deixando-a mais activa e mais consistente.

Trilha dos Inadaptados apresenta-nos a visão de sairmos da caixa e olharmos para o que se produz fora dela: um conjunto de jovens sem lugar para depositar as suas inspirações e aspirações e mostrarem o que realmente valem.

Ao despaginarmos as folhas, fomo-nos confrontando com um conjunto de assuntos que acabam por definir a consciência social, cultural, religiosa e política do lugar de partida dos progenitores dos textos. De uma forma aleatória, seleccionámos alguns contos para construirmos as ideias que aqui queremos segmentar.

O Polidor de Passos, de Alírio Polo, é o conto que dá abertura à Trilha composta por 21 contos. Alírio nos deleita numa narrativa fantástica cujo personagem é um rapaz engraxador que mais do que engraxar sapatos, outorga confiança e bem-estar às pessoas a quem presta serviço. Como nos atesta o seguinte parágrafo.

A minha missão é polir os passos das pessoas. Engraxar sapatos é só uma forma de fazer isso. Meu verdadeiro objectivo é fazer as pessoas andarem bem, porque passos sujos não levam a lugares limpos.

O conto procura explorar a questão da valorização do ofício de engraxador, a entrega de quem o exerce, a fim de satisfazer as suas necessidades e a de seus clientes.

Trilha dos Inadaptados é um barco que procura naufragar num vasto mar de coisas que ainda nos ferem nos dias de hoje. Em O Apagão, Mário-Henda traz à tona a problemática da descriminação racial, os apagões constantes nas cidades do País, deixando o povo às escuras, bem como as possíveis infidelidades dos casais que podem chegar até gerar filhos fora do lar, como começa a estória num grito histérico do esposo no primeiro parágrafo do conto.

-Quem é o pai da criança? Responde, mulher! É um dos meus amigos, não é!?

A literatura procura materializar os referentes do mundo real. Nesta perspectiva, cada autor munido das suas vivências e de tudo que lhe rodeia, traduz as somas das suas experiências no texto.

Hondina Rodrigues, em Miloca, transporta-nos para os lugares de crenças, as curas de doenças por intermédio de medicamentos tradicionais, inventadas pelo povo antes das invasões coloniais, e a proliferação de igrejas que foram surgindo no território nacional nos últimos anos, criando vários sistemas de crenças como nos aduz no primeiro diálogo que abre a trama.   

Então, naquele tempo, antes de chegar o branco, éramos todos feiticeiros? Eu que sou tua mãe também sou feiticeira? Sempre me curei com ervas e orações, mas nunca bungulei no teto de ninguém. Tu mesmo não andaste nos quimbandas para curares o Zelito da doença de pássaro que ele tinha? Quantas vezes foste ao hospital com ele? Quantas consultas fizeste? quantos medicamentos lhe demos? Essa igreja onde foste te meter não te proibiu de curar o teu próprio filho como te proíbe agora de curar essa perna?

Miloca aborda as questões das gravidezes precoces, o respeito aos mais velhos e as crenças e crendices do nosso dia-a-dia, que podem alterar o modo de vida de uma determinada pessoa. Como a implicância de que a gravidez de Miloca se tornara difícil porque a mesma pulara o cão lá de casa e varrera a casa no período noturno. Mitos que acabaram por se constituir numa crendice por nunca terem sido cabalmente fundamentadas como nos afirma a narradora.

Em Estranha Diplomacia da Paixão, Emanuel Lima leva-nos numa história de amor e literatura, surgida a partir das redes sociais, um lugar onde hoje todo mundo faz moradia. Lima narra, metodicamente, o encontro de dois jovens que se conhecem no mundo virtual e vão travando numa conversa aberta assuntos sobre literatura, música, política, sexo e amor. Numa leitura que nos prende ao texto, Estranha Diplomacia da Paixão é uma leitura verossímil aos dias que atravessamos. O confinamento virtual que nos ocupa o tempo, os amores e desamores que lá descobrimos e o ciclo de debates sem filtro que deixou o mundo despudorado.  

Trilha dos Inadaptados explora o insólito nos seus mais vários contos que compõe a trilha: as pessoas que frequentam as igrejas para ocultar as suas verdadeiras personalidades; a problemática da guerra que separou várias famílias para destinos incertos; o envolvimento no local de trabalho entre funcionários e chefes; a falta de transporte público suficiente que faz com que as paragens se abarrotem de gente; o desequilíbrio no seio familiar quando se perde a mãe e outros. Cada autor, baseado nas suas experiências, evidencia seu próprio mundo, as suas próprias inquietações e as lacunas que a sociedade oferece. Um conjunto de assuntos que não cabem nesta ínfima abordagem que aqui aludimos.