O cântico contemporâneo em Pedro Vale

Pedro Vale é um jovem escritor português, que conheci há um mês no facebook por intermédio do escritor angolano, João Tala. Pela sua estética, numa primeira fase, concluí que fosse um jovem angolano por apresentar a estética da desconstrução usada pelo Movimento Litteragris, um movimento literário que se afirmou, categoricamente, pela sua ‘’ideo-estética comum’’, alicerçada no surrealismo, no simbolismo e no erotismo.        Vale surpreendeu-me também por acarretar essa escrita tão lisa como “o azul do mar”. Assim, insere-se no mundo da escrita com seu livro digital “Azul Instantâneo”, confessando-se, com uma determinação compromissiva, que o caminho a seguir para sua criação literária era o mundo actual:

                                                              [ …]   Retrato                           atual.              

                                 Pensamento,                                                                          urgente                                                 

                                                                      Informação.

Vale está de acordo com a ideia de que a escrita é sempre uma escolha livre e que todo aquele que escreve não deve aceitar a imposição temática ou temporal. Aliás, tanto faz no passado quanto no presente, há sempre algo a tratar, portanto o que importa, para o poeta, é “entrarmos” nesse “maravilhoso jardim árabe e sentarmo-nos logo ali/no primeiro banco de pedra lisa/imaginando o azul do mar” e extrair dele o necessário ou aquilo que é vital para a alma. Assim, Vale vale-nos pelo seu convite para contemplarmos o mundo nos seus diversos ângulos.  

Sua poesia é consistente, argumentativa, apelativa e dialogal. Nela sentenciam-se as críticas do homem contemporâneo lançado ao não descanso, um homem preocupado com o trabalho, com o dinheiro e que se esqueceu da necessidade do outro ou da afectividade perante o seu semelhante, a dita crise da proximidade (homem hasteado com vários adjectivos de descaracterização). Em suas críticas, sempre muito contundentes, o sujeito poético vê esse homem como o mais agitado de todos os tempos. Em relação ao homem do passado, a única coisa que têm em comum é, mais ou menos, a noite. E divergem-se logo que amanhece.

Da noite pró dia                                                                                                                      Inverte-se o canto                                                                     Augúrico da cotovia

A cadeia alimentar profissional domina o século XXI, impondo a literacia funcional tanto no campo comercial, judicial, sociológico, turístico, religioso quanto noutras áreas do saber. Essa maneira bastante polémica, para o sujeito poético, não passa de uma reforma urgente imposta pela globalização, onde cada um procura mostrar seu potencial rigorosamente. Mas essas profissões não passam de um altar disfarçado ou da falsa sensibilidade (anatomia sem forma) e até as mais sagradas.  

Tecetera e tal

Ignóbeis mercados abençoados pelo protetorado judicial                                           Envelhecem propositadamente a dívida liberal.                                                               A familiaridade da paragem do gelatinoso avião patriarcal.                                                Conchas consumidas pelo musgo ambicioso, colonial.                                                           O antónimo de cerveja descrito e vivenciado pelo sociólogo coloquial.      Plasticidades manobradas poeticamente, instinto maternal.                                    Um gesto jovial em telhado inalcançado e disfuncional.                               Missionários com decotado perfil estrategicamente comercial […].                                O farmacêutico profissional filosofa da grevidade pontual […].

Alheamento absurdamente temperamental.           

A super dependência de muitos países, gerando o analfabetismo funcional local, é um holocausto que o mundo actual enfrenta. Numa crítica idealista, Vale referencia a auto fossilização do homem que se vê como um importador eterno. Para isso, delimitando sua crítica, dirige-se a Portugal. Vê esse país como um caos infindável na importação. É um país que herdou a Época Medieval, tornando-se Génesis, totalmente, acentuada: no princípio, era a exploração e a exploração tornou-se importação permanente (Alfa e Ómega). Assim, Portugal, não querendo se desfazer do êxodo mercantil, sobrevive dessa calamidade e esqueceu-se do termómetro local. Mas tudo isso deve-se aos sonhos universais fundados há séculos.

                     Luz(a) alma

Sossega e vive do ar,                                                                                          a cómoda alma, armário espacial.                                              

Plana e cisma a esmola pintada                                                                          na rua nua e perfumada.

Sonha a universal fundação,                                                                               À beira-rio, navio-fantasma e fruição.

Entoa, na guitarra infantil, dramática gente,                                                        num acorde simples, medieval.

– Ó alma lusa,

Acorda e sente,                                                                                     mesmo que à tangente,                                                                                        O que é ser filha de Portugal.

Tal crítica da falta de produção local estendeu-se ao campo literário. O poeta, dentro das suas leituras, constata que muita produção literária feita por alguns Clássicos do seu país não passa de uma mera mentira ou de uma extraliteratura o que terá contribuído, significativamente, para o genocídio da cultura identitária portuguesa com destaque na língua, nos costumes, na religião, enfim. No entanto, embora se evidencie um rol de clássicos portugueses à margem da produção literária local, chega-nos ao eixo central, da sua crítica, a obra ‘’Viagens na minha Terra’’, de Almeida Garrett, que segundo alguns críticos literários é com essa obra que se inicia o ‘’Romantismo Português’’. Pois, o sujeito recriacionista esclarece que essas viagens são pouco expressivas, por evidenciarem o mundo exterior e não interior.

Pedra

O cavaleiro,                                                                                                                 símbolo maior,                                                                                                  Regressa do bosque:

Punhal, corola d’espinhos,                                                                                             Amante    docemente     assassinada,                                                                 Canteiro de inúteis, selvagens papoilas.

Porta entreaberta, treva do livro, argiloso feno.                                                     Coração que arde ao colo da casa, […].                                                              

Anoitece aqui,

                         Pedra.

            Em pleno século XXI há pessoas que ainda acreditam no desenvolvimento da história da escravatura. Assim, criaram netos e tetranetos para a conservar. O que é mais espantoso é ver que quem, desde sempre, foi alvo de exploração já se esqueceu, vive feliz e, pelo seu perdão, vai ao encontro daquele que o maltratou, mas não encontra conforto, porque a história é um cântico ordinário.   

Uma menina metafísica caminha e a história comete um crime e ela chega a uma casa serrada três quartos e pensa que todo o mundo é feito de lama e salta da falésia e cai no chão coberto de vidro e grita e foge e corre ao pa trás e o grito ecoa e acredita que sim até ao fim mas não – a história assassina tinha razão – pum!

Os prémios mundiais hoje são muito manipulados: dá-se prémio a alguém que nada fez em prol da literatura senão um simples papagaio que quis imitar o silêncio dos deuses. Mas esses textos, por não terem passados pelo saneamento básico, devido ao amiguismo e ao nepotismo, são idolatrados sem se saber que o credenciado é um “cão sem fim”.

A escrita rompe com o hábito e cursa uma boleia                                                    sensata para a infância dominical, desfazendo                                                                   o equívoco e cruzando a luz invisível:

Espátula esburacada e centímetro                                                                        engelhado, sesmaria, prémio                                                                                           de mil anos, crédito                                                                                                        amigável , c ã o sem f i

                                            M

Em linhas gerais, a poesia de Vale é de reter em primeiro lugar. Acredito que o livro “Azul Instantâneo”  é e será um substrato da literatura portuguesa e não só. Seus textos aqui reunidos giram em torno da arte de escrever, da crise do homem contemporâneo, da banalização das coisas, da escravatura, do erotismo e da valorização da identidade nacional.