O desnudar da ditadura em “A sociedade dos sonhadores involuntários”

A literatura tem em si a característica de imortalizar muitas coisas, de fazer-nos lembrar com carinho de livros, de autores e uma infinidade de ideias que nos marcam ao longo da vida. Então, para nunca nos esquecermos da força do sonho nem de como este nos pode levar a descobrir coisas impressionantes sobre nós mesmos e sobre o mundo à nossa volta, José Eduardo Agualusa, escritor angolano, deixa-nos um grande e significativo lembrete: o livro A Sociedade dos Sonhadores Involuntários.

E nesses caminhos de descobertas aos quais os sonhos nos podem levar, o autor previne-nos:

“Todos os sonhos são assustadores, porque são íntimos. São o que temos de mais íntimo. A intimidade é assustadora.” (pág.96)

A escrita de José E. Agualusa dispensa, actualmente, qualquer tipo de apresentações pois fala por si só. E é por essa escrita, sempre envolvente, que somos cativados e levados a experimentar um mar de emoções. É essa mesma escrita que nos coloca diante de um romance que é sobre sonhos, mas, sem deixar de ser só sobre sonhos. A cada página são explorados outros temas e, sobretudo, acompanhamos o despir de uma ditadura que mesmo usando “vestes de ovelha” mostrava sempre as garras do lobo por detrás dela.   

Capa do livro: A sociedade dos sonhadores involuntários, edição portuguesa

Na Angola descrita no romance, dentro de um contexto político e social profundamente marcado pela guerra civil, se forma e cresce um “gigante” que constituía um regime totalitário. Esse gigante, por exemplo, tem traços comuns com o “Grande Irmão/Big Brother” do livro 1984 do escritor inglês George Orwell, era aquele que tudo via e tudo controlava sem que a olhos nus um cidadão comum o pudesse ver também. Acções de corrupção e de acumulação individual de capitais a partir dos bens públicos eram a marca desse gigante, e quem sentia as consequências disso era o povo, era o cidadão a quem faltava no seu quotidiano as condições básicas para se ter uma vida digna.

O regime roubava partes de sonhos às pessoas: o sonho de ter uma casa, um emprego, de ter cuidados de saúde, de ter educação, de se sentir e ser livre para escolher as opções partidárias ou não, de participar na tomada de decisões relativas a vida do país, de ter liberdade de expressão, etc. Quando não roubava partes de sonhos, roubava sonhos inteiros ou destruía-os. Criava barreiras e dificultava o acesso a direitos fundamentais dos cidadãos. Procurava garantir que enquanto uns podiam ter direito a tudo, outros não podiam ter ou tinham quase nada:

 “Este país está dividido entre aqueles que podem reivindicar direitos, e os outros, os que não têm direitos nenhuns.” (pág. 156)

Em pleno séc. XXI ainda recebemos relatos vindos de várias partes do mundo onde ditaduras camufladas em democracias roubam a dignidade, a tranquilidade e a paz às pessoas. Em África, aí bem perto de Angola, bem perto de nós, na vizinha República Democrática do Congo anda há algum tempo num clima de tensão e conflitos em que, enquanto aqueles que os originaram se mantêm confortáveis nos seus palacetes, o povo sofre horrores e desestrutura-se. Esse é só um dos muitos exemplos, ao redor do mundo, das ditaduras do nosso tempo. Depois de se ter evoluído, por um lado, em termos de definição de direitos, de assinaturas de compromissos e tratados internacionais relativos ao bem-estar dos povos e nações, continuamos, por outro lado, a ser testemunhas de destruição, de desagregação de famílias e povos tudo porque não foram respeitados esses mesmos direitos. É preciso não só definir direitos, não só assinar tratados e celebrá-los, é importante acompanhar e “fiscalizar” o processo de execução dos mesmos independentes do sítio em que estejamos.

Quantos sonhos terão sido roubados aqui, aí, lá, um pouco por todo mundo? Quantos sonhos foram divididos ao meio e destruídos por esse mundo fora? Quantos sonhos, que poderiam ter construído dias melhores, foram inutilizados?

A ditadura se apresenta de várias formas no livro, ao abrigo de várias personagens, algumas até lembram-nos uma ou outra pessoa de quem já ouvimos falar ou de quem já sentimos a mão pesada. João Aquilino, um dos personagens do livro que conhecerá quem se propor a ler, era um dos representantes da ditadura e sobre ele nos dizem “… João Aquilino o director do Jornal de Angola… fora nomeado, não pelas suas qualificações enquanto jornalista, que não tinha nenhumas, e sim pelo seu passado de esforçado militante do partido” (pág.17). Acrescenta-se sobre ele que era “um polícia do pensamento ao serviço da ditadura” (pág.18).

Capa do livro: A sociedade dos sonhadores involuntários, edição brasileira

Essas linhas que perfazem ficção casam tão perfeitamente com várias realidades à nossa volta e nos fazem questionar se não estamos, afinal, a ler a nossa própria história. Acontece ao longo de todo o romance esse questionamento que põe à prova a nossa realidade, que nos faz lembrar grandes bocados de Angola, do nosso quotidiano. Perguntamo-nos imensas vezes, até que ponto esse país do livro não faz também parte de nós. É no meio do realismo mágico e da sátira já características de Agualusa que nos questionamos sobre o “mundo real” que nos circunda.

Além das personagens, a ditadura se apresenta também por meio da violência. E a par do romance, lembremo-nos dos vários relatos na história da humanidade que espelham regimes totalitários que cometeram genocídios e marcaram a vida de todos de formas significativas e provocaram várias mudanças sociais. Lembremo-nos também que violência é aquilo de que se socorrem os covardes e pobres de espírito para oprimir os outros. E “o que se alcança pela violência permanece envenenado pela violência” (pág. 43), não subsiste por muito tempo.

Regimes totalitários usam também o medo como forma de opressão. Procuram enraizá-lo de forma profunda, procuram semeá-lo no consciente e inconsciente das pessoas de modos a fazerem com que haja silêncio enquanto a ditadura cresce. É preciso que as pessoas tenham medo de que o mal cresça e não seja contestado. Há que se lembrar ao cidadão comum, de maneiras explícitas e implícitas, que ele pode perder o pouco que já tem se se recusar a prosseguir calado e aceitar as míseras condições em que vive.   

Entretanto, surgem, nesses contextos de ditaduras e de opressão da liberdade de expressão, aqueles que têm coragem para denunciar e criticar os erros do Governo. Daniel Benchimol, um dos personagens centrais do livro, atreveu-se a tecer críticas ao Governo nalguns momentos e foi mal interpretado, sobretudo, visto como “um inimigo do país”. É comum em regimes ditadores nomear como “inimigos” todos aqueles que se levantam para reivindicar justiça. Mas como disse o próprio Daniel “criticar os erros do Governo não era o mesmo que destratar Angola e os angolanos. Pelo contrário, eu criticava os erros do Governo porque sonhava com um país melhor.” (pág.16)

Essa força de sonhar com um país melhor que Daniel tinha sente-se e vive-se com muito mais intensidade no livro por outros personagens. Personagens muito mais jovens e que representavam o futuro. A força e o valor do sonho colectivo surgem e impressionam-nos. Descobrimos nesse país fictício como o sonho faz a força e pode unir as pessoas para um bem comum. Mesmo quando se procura pisá-los, envenená-los ou destruí-los, às vezes, eles sobrevivem, regeneram-se, sincronizam-se e fazem renascer nas pessoas a esperança. E apresentam-se como:

“Sonhos em sincronia. Como os corações dos cantores, nos grupos corais, que tendem a bater em uníssono, diminuindo e aumentando o seu ritmo consoante a estrutura da música.” (pág. 112)

E essa sincronia é o que quebra o medo. O mesmo medo usado para oprimir, destruir e corromper o povo nas ditaduras. Essa sincronia faz lembrar que:

“O medo não é uma escolha. Não há como evitar sentir medo. Contudo, podemos escolher não nos rendermos a ele.” (pág. 229) 

E a partir do momento em que se escolhe não se render ao medo, abrem-se possibilidades de fazer face à ditadura. E quando, principalmente, jovens se levantam para enfrentar regimes de opressão, então até ditadores estremecem:

“O Ínfimo Presidente rendeu-se: 

– Eles não têm medo! Esses miúdos não têm medo! Onde já se viu?! São malucos, não mostram medo, e isso é uma doença contagiosa.”    

Enquanto cidadãos de qualquer país, de qualquer sociedade, importa ser participativo e consciente em relação às coisas que acontecem nos contextos em que se está inserido. Saber identificar ditaduras sob as vestes de democracias é crucial, pois, estas são, muitas vezes, as mais venenosas. Exibem ao mundo princípios democráticos, mas escondem muita podridão e corrupção em si. Contaminam com a sua podridão sociedades inteiras e perpetuam assimetrias sociais no que diz respeito ao acesso de direitos civis e políticos.

Por isso, deve ser e é importante que seja sempre uma doença contagiosa os sonhos de justiça, liberdade e igualdade social. Não importa o tempo ou o espaço. São sonhos que devem se manter vivos, acesos, no nosso consciente e inconsciente.