As classificações, nos Estudos Literários ou em qualquer outro campo categorial, são importantes procedimentos teórico-estruturantes que, a partir de relações que se estabelecem entre termos preexistentes, permitem o surgimento de novos conceitos ou termos. A divisão triádica dos Géneros Literários (lírico, narrativo e dramático) assim como os seus subgéneros não se podem constituir como postulações ou prescrições normativas que coloquem entraves à liberdade dos criadores e à própria evolução do fenómeno literário que, como é óbvio, avança sempre que surgem novos factos literários (obras, movimentos, gerações etc.). Ademais, a criação literária não se rege por um princípio de homogeneidade resultante de qualquer ordem estética. É legítimo que se elaborem conceitos genéricos a partir duma pluralidade de criações particulares, no entanto não se pode aceitar que a natureza duma obra literária dependa de critérios pré-estabelecidos, só porque não se quer perder épocas áureas da história da literatura. Coloca-se aqui a questão sobre o carácter primacial da obra e da teoria literárias. A teoria não precede a obra – facto indubitável. Para se chegar à teoria passa-se por diversas experiências e observações. As teorias literárias, hoje conhecidas, não nasceram de um vazio; nasceram da observação dos factos literários, emergindo, muitas vezes, com tais factos.
Muitos artífices da palavra obedecem, à risca, as indicações teórico-normativas sobre a conceituação e caracterização dos géneros literários que aparecem em manuais de teoria da literatura ou em gramáticas como princípios orientadores de criação literária. Na contramão, situam-se aqueles escritores que procuram demarcar-se dessas convenções normativas e escrevem obras que, por vezes, colocam em crise o pensamento crítico – doxográfico e ideológico – que, numa teoria existencialista ao reverso, advoga a «essência» como predecessora da «existência». É neste lugar de desafios à convenção onde se situa a «República do Vírus» de António Quino.
Procurar-se-á, ao longo da abordagem, situar a obra «Republica do Vírus», através de procedimentos teórico-analíticos, no seu lugar exacto, pelo que se faz imprescindível alertar que se tocará em aspectos mais formais, apesar de se recorrer, com alguma frequência, ao conteúdo semântico. Isto se dá porque, no domínio da narrativa, o conteúdo é um elemento indispensável para se determinar a forma final de uma obra e enquadrá-la em determinado género.
As notícias postas a circular em vários jornais e sites de informação, dentre os quais o Jornal de Angola, na sua edição de 11 de Julho de 2015, apresentam-na como um «romance», uma classificação que choca dialeticamente com o que se vai defender ao longo da «Maka», pelo que será impugnada. Na verdade, trata-se duma obra que não deve ser de fácil caracterização, na medida em que o próprio autor se demarca, consciente ou inconscientemente, das classificações, como nos revelaria a praxis – «romance, novela e conto» – para se referir a uma «estória»: um lexema muito recorrido pelos autores e editoras para se demarcarem de eventuais equívocos taxonómicos.
«República do Vírus» é o retrato da ascensão política assim como das imprevisibilidades que levaram ao declínio um «personagem-tipo» (na medida em que se constitui como «modelo» ou «paradigma» especialmente dos políticos africanos), de nome «Zuão Xipululu», que gozava de muita simpatia por parte dos eleitores, cidadãos da República Unida da Mulumba (RUM), e que, apesar de levantar – em alguns casos – objecções relativamente ao modo de actuação do seu partido, PIM-PAM-PUM (Partido das Ideias Mobilizadoras de Progresso e de Acções para a Mudança de um País Unificado e em Marcha), se mostrava sempre fiel, até ver a sua carreira política ameaçada após ter sido o orador de um comício, durante o qual não colocou em destaque a figura do seu líder, revelando também alguns traços de transtorno de personalidade narcisista. O comício extraordinário foi realizado em virtude de um vírus (vírus da mbunda), que rapidamente viria a atingir a proporção de uma pandemia. Paradoxalmente, tal vírus passou a ser bastante cobiçado e viria a converter-se em património e símbolo nacional daquele país. Os factos são contados por um narrador sarcástico e irónico, com focalização omnisciente que, a partir do sonho do protagonista, nos dá a conhecer a história de vida do político, interpondo recurso ao «simbolismo» como figura de retórica ou à «metáfora da decadência», narrando um evento cuja acção começa no céu e termina na terra, para assim revelar o declínio do protagonista.
António Quino, para a construção desse universo diegético, serve-se da sua condição de escritor, jornalista e estudioso para nos presentear uma obra híbrida que encerra elementos de cada um dos campos profissionais aqui referidos.
«República do Vírus» é uma narrativa escrita com astúcia, numa linguagem que se pode dizer barroca por alguma exuberância na sua arquitetura estética; entretanto, que não pode ser confundida, materialmente, com «prosa poética» por força da sobreposição do conteúdo narrativo à paisagem lírica. Nela, assiste-se a um processo de tecelagem ou entrelaçamento de géneros literários e não-literários (prosa literária, entrevista e um texto normativo-administrativo em forma de nota disciplinar).
Vale lembrar que o lugar da obra no espaço taxonómico da narrativa contemporânea é a perspectiva teórica que se quer tomar. Neste âmbito, para se demarcar logo de procedimentos meramente retóricos que permitam alongar um texto, afirmar-se-á que se trata de uma «novela», dada a sua extensão gráfica (geralmente inferior ao romance e superior ao conto) e, fundamentalmente, por outros factores que serão aludidos a posterior. Nesta senda, vale alertar que, quando se diz tratar-se duma novela ao invés de um romance, não pressupõe rebaixar a obra. Trata-se, meramente, duma verdade racional, que pode ser defendida através duma lógica matemático-literária.
A novela «República do Vírus» incorpora, na sua construção, para além da narração, diálogo e descrição como categorias da narrativa; uma mega entrevista em treze páginas (pág.41 a 54) e uma nota disciplinar (pág.70) que, apesar de se poderem ser consideradas como corpus autónomos, constituem-se como partes integrantes que acrescentam outros dizeres para além daqueles que se podem subtrair a partir do conteúdo narrativo comum (narração, descrição e diálogo), porém não tão significativos ao ponto de impuserem outra taxação, a não ser «novela» como já se referiu.
«República do Vírus» é uma narrativa em que as aventuras da personagem principal (as viagens, a Loira alemã, as estratégias para acabar com a reputação daqueles que obstaculizavam as acções do partido PIM-PAM-PUM, o vírus que desencadeou o discurso que o levaria ao declínio) podem ser articuladas numa única acção, numa espécie de eventos somáticos que se interligam por via duma relação de causa e efeito. Todos os eventos são centrados em Zuão Xipululu. As personagens que surgem ao longo da diegese aparecem para cumprir uma determinada função na história e relacionam-se diretamente com o protagonista: assim, Troika, a detenta, de nacionalidade alemã, acusada de ser espiã, com quem Xipululu viria a ter um relacionamento amoroso que serviria de trampolim para a sua afirmação no contexto geo-político mundial.
Em «República do Vírus» habitam várias personagens (Madruga Bompapo, Engenheiro Salomão Alves Terra, Dona Maria Congregadora, Comandante Xico Giba, Mais-velho Marcelino Mbemba, Engenheiro, João Lichado, Papá, Sabu Ndele, Profeta Sabias dentre outras); no entanto, com função meramente decorativa e, portanto, com pouca influência no desenvolvimento e desfecho de uma diegese que continua indefinidamente com o desmaio do protagonista.
República do Vírus não é um livro para leitores pouco experimentados. Trata-se duma novela de confusão aparente que expõe ficcionalmente a desorganização político-administrativa de uma república cujo referente real poderia ser qualquer país.