O plutocrata

Numa manhã fria de Junho, despertei, ledo, por volta das sete horas. Para trás tinham ficado os dias em que despertava muito cedo e dar no duro. A vida sorriu para mim. Hoje, sou um homem muito rico.

Tomei um banho rápido na minha suíte, que é uma autêntica sumptuosidade. O WC tinha toda a luxúria necessária como se fosse de um verdadeiro palácio, desde o jacuzzi, aos melhores gel-de-banho.

A minha consorte estava na Espanha com os meus três filhos, em gozo de férias. Normalmente, nas férias trimestrais, proporciono-lhes viagens a países da Europa. Agora que tenho muito dinheiro, faço questão! Diferente de mim que, enquanto petiz, avião só o conhecia vendo no céu.

Naquela manhã, celebraria o maior negócio da minha vida. Por isso, sentia-me o homem mais feliz do mundo. Assinaria um contrato para uma multinacional europeia. Era Seria um marco importantíssimo para a minha empresa, pois entraria na Europa através de uma prestigiada multinacional.

Desci à cozinha, onde já estava preparado o pequeno-almoço. Sinceramente, penso que, por aquele  recheio de iguarias na mesa, devia chamar-se de grande-almoço e não de pequeno, pois de pequenez aí nada havia.

Após a degustação – tenho uma empregada que é uma exímia cozinheira –, fui ao meu guarda-fatos. O encontro exigia que a roupa fosse preparada com esmero. Seria um grande dia! Escolhi o fato mais caro que tinha. O relógio, fiz questão de usar aquele que comprara nos Estados Unidos da América.

Fui à garagem e, dos quatro jipes que lá se encontravam, escolhi o Range-rover, que muitos chamam tubarão. Considero-o uma relíquia, por razões muito óbvias. Antes de sair, deixei orientações precisas aos empregados. Recomendei-lhes que tratassem da casa, principalmente da piscina. Se calhar, traria os futuros sócios europeus para conhecer a sumptuosa mansão em que vivo no Zango 3. Que ninguém pense que sou um hedonista, muito longe disso! Construi o meu império ao longo de muitos anos e com bastante suor.

Logo que liguei o carro, envolto aquele conforto todo, lembrei-me do meu passado difícil. Olhei para a minha sumptuosa mansão, dei um grande suspiro de alívio. Pensei naquele persigal em que meus irmãos e eu fomos criados pela minha mãe com muito sofrimento. Lembrei-me da Sandra, uma amiga de infância, que, tal como eu, também tinha atingido o sucesso. Mas reconheço que o sucesso dela nunca reuniu consenso no bairro. Ainda tenho bem presente as acusações que ela sofria. Certo dia, um vizinho chamou-a de gatuna e, admirada, a sua mãe retrucou que era mentira. Porém, o vizinho foi mais longe e disse que Sandra era gatuna diferente, porque roubava com as pernas! Aquilo deu o maior barulho no bairro! Isso não importa agora. O que importa é que me orgulho da Sandra.

Para me sentir próximo daquele meu passado, coloquei, no rádio do carro, um disco de Kuduro e levei ao máximo o volume. Era barulho puro! Afinal, aquele era um dia de festa, para mim!

Achado na avenida Deolinda Rodrigues, lembrei-me de que esta mesma avenida já me tinha causado um grande problema com a minha consorte. Tinha chegado tarde a casa e, desabafando, disse-lhe:

– Mulher, aquele buraco da Deolinda cansou-me de verdade!

Olhou-me sordidamente. Atestou-me com um sapato na cabeça. Quando me expliquei melhor, já era tarde. Na verdade, queria dizer-lhe que tinha atolado com a viatura num buraco da avenida Deolinda Rodrigues e que foi muito difícil a retirar.

Ao som do Kuduro, seguia calmamente pela via, cujo trânsito fluía. O clima ameno permitia que as pessoas andassem a pé. Havia grande movimentação de transeuntes ao longo da avenida. De repente, vi o meu rosto, através do retrovisor interior. Soltei uma grande risada. Foi tão grande a risada que os transeuntes e os outros condutores olharam-me de lado.

O motivo da risada foi o facto de ter notado, pelo retrovisor, que eu ainda não tinha os pés de galinha no rosto, não tinha “jinvi” (cabelo branco) e, por tal facto, não era um homem anoso. Mas já era muito rico e estava prestes a entrar na Europa pela porta grande. O que mais me orgulhava era que construi a minha riqueza com trabalho árduo e honesto. Fui engraxador, lavador de carro, taxista e, ainda, consegui terminar uma formação superior. Diferente da minha amiga Sandra que nunca a vimos a ir à escola. Sempre tive grande fiúza, mas nunca sentei com ela na igreja, fui à luta nas ruas, lutei, lutei, lutei e ganhei!

De repente, vi uma amálgama ao longo da avenida, senhoras a cirandarem. Umas entraram na estrada. Desviei a primeira, desviei a segunda, tentei desviar a terceira, mas já não consegui. Foi uma pancada forte. O asfalto da avenida Deolinda Rodrigues foi maculado com o vermelho do sangue daquela mulher, zungueira, que fugia dos fiscais.

Perdi o norte, coloquei as mãos na cabeça. Senti-me um matricida, porque logo me veio a imagem da minha mãe, que fora também uma zungueira. Apeei do carro, que continuava com o som muito alto e tocava o kuduro de Rei Loy, “Organiza a tua vida, depois aponta o dedo!”. Desnorteado, nem fechei a sua porta, corri, ajoelhei, coloquei-a no meu colo e, feito um verdadeiro filho que tinha diante de si  o cadáver da sua mãe, gritava:

– Mãe!!! Não morras, minha mãe!!! Volta, minha mãe!!! Mãeeeeeeee!!!!!

O local encheu-se de pessoas e, mesmo envolto de grande pranto, pude ouvir um efebo dizer ao seu comparsa:

– Wi, está fofo!

Logo percebi qual era a intenção deles. Pousei-a no asfalto maculado de sangue e, recordando o tempo das lutas  pela vida que travei nas ruas, puxei o peito para frente e disse-lhes:

– Vocês estão a pensar que eu sou um lombucho?! Sou um plutocrata. Tentam e verão o que vos acontecerá!

Assustados, mais pela palavra que desconheciam, saíram do local. A minha advertência não era vã. Fui ao carro, desliguei a música, que continuava alta e ainda tocava o kuduro do Rei Loy. Fechei a porta.

Ao voltar ao cadáver da minha mãe, lembrei-me do importante encontro que tinha. O fato caro que vestia estava todo maculado com o sangue dela. Pasmado, questionei-me:

– E agora?! E agora?! E agora?!

Escongolense!! Escongolense!! Escongolense!!”

            “Avó Kumbi!! Avó Kumbi!! Avó Kumbi!!!”

            “Maianga, Mutamba!! Maianga Mutamba!! Maianga Mutamba!!”

            “Nzamba 2!! Nzamba 2!! Nzamba 2!!”

Vociferavam os cobradores na paragem de táxi, atrás da minha casa. Na verdade, eles substituíram os galos que, com os seus cacarejos, nos alertavam do dia que já amanheceu. Assim, despertei-me.

“Eh! Meu Deus! Estava a sonhar. Que sonho! Parecia real, eu senti mesmo aquele luxo todo” – cogitei.

Esquecido da vida de luxo que aquele sonho me dera, caí na real. Acedi ao interruptor e para meu espanto, não havia luz! Corri para a casa de banho, tomei, rapidamente, o meu banho frio de banheira. Sem luz, só me restou vestir a roupa amarrotada. Corri para apanhar o táxi. Eram já cinco e trinta e, diferente do clima ameno do meu sonho, adivinhava-se um dia quente, pois a aurora cedia-se ao alvor.

Posto no táxi, ao meu lado estava sentado um kota que exalava um cheiro nauseabundo. Pelo visto, tinha dormido com uma grande bebedeira. Lembrando-me dos quatro jipes que tinha na minha garagem do sonho, mas na vida real estava a inalar maus cheiros gratuitamente. Dei uma pequena risada pela ironia. E o kota, suspeitando, amarotou-me o olhar. Então, tive de me conter.

Na hora do almoço, fui contar aos meus dois amigos sobre o sonho que tive. Ao terminar, caímos os três em longas gargalhadas. O que lhes pareceu mais curioso foi o facto de que eu não esquecera nenhum detalhe do sonho, parecia que lhes contava uma estória que tinha lido num livro.

– Afinal, tu tens um rico dicionário?! – perguntou-me um deles.

– Qual dicionário!? (risos) eu também não conheço estas palavras difíceis.

Caímos novamente em grandes risadas. Logo, o outro colega tirou o telemóvel e, no dicionário, pesquisou o significado de plutocrata.

 “pessoa influente por causa da sua riqueza”

Olhamo-nos e, desta vez, mais gargalhadas. Os nossos olhares foram de admiração.

– Epá, sendo ou não, e porque gostamos do sonho, se calhar, um dia serás. Tu agora és o Plutocrata – alvitrou o colega.

Honestamente falando, gostei daquele eu do sonho, aceitei o nome. Rapidamente, toda a empresa passou a chamar-me Plutocrata e nem demorou a chegar ao bairro. Até agora, por onde quer que passe, sou conhecido como Plutocrata.