O vírus do extermínio

A disseminação pelo mundo do novo coronavírus, SARS-CoV-2, teve um impacto tão devastador que, num sopro vulcânico, eliminou tudo o que se falava com contundência e o que impulsionava os maiores debates sobre o funcionamento do mundo. Agora, o universo da informação não passa de uma combinação de boletins com actualizações sobre a pandemia. Tudo ficou morno, as notícias passaram a ser lavadas com água e sabão ou higienizadas com álcool em gel.

A pandemia que chegou como uma espécie de raio X para o mundo, para a sociedade global, está a deixar a nu verdades que andaram encafuadas pelos pós da história. É por demais sabido as condições sanitárias dos países africanos. E como tal, é esperado que a pandemia venha fazer uma razia tal que chegue a confinar África a uma verdadeira vala comum. Assim, fazem transparecer diversos órgãos de informação. É sabido, também, que, pelos outros lados, muitos esperavam, e rogavam secreta e publicamente, para que os ventos do oriente arrastassem o vírus da nova pandemia pelo Nilo abaixo e se instalasse no continente africano onde conheceria o seu auge e, de preferência, que por cá ficasse. Mas o vírus parece que tinha ainda outros planos e mudou primeiramente a correnteza para lá, onde nada disso parecia ser possível acontecer, embora já tenha acontecido e cada potência atirou, como sempre, a responsabilidade a outrem pela causa.

Vozes afirmaram com peito inchado que era pouco provável ou mesmo improvável, o vírus chegar ao País A, B ou C, mas que, com certeza absoluta, chegaria a África, desde o corno até aos confins abaixo do Sahara. O vírus veio mostrar que a arrogância sempre se curva ante a imprevisibilidade. E as profecias não se fizeram cumpridas. Poucos meses após isso, as mesmas vozes e outras com mais contundência afirmaram que o vírus faria muito mais vítimas em África que em todo o mundo, profetizaram que mataria milhões, mais dezenas de milhares do que o somatório de todo mundo no momento. Sejamos honestos, por um instante, já lá vão mais de cinco meses desde que os primeiros casos conhecidos deram as caras e, com isso, já dá para ter uma ideia precisa de que ninguém sabe ao certo o que tal vírus reserva para o mundo. Entretanto, antes de desatar a dizimar os milhares de africanos marcados ao extermínio pelos diversos órgãos de informação, o único facto, verdadeiramente tangível, a mais pura das senhoras das verdade, é que até ao momento, o que vemos pelo mundo parece ser a natureza a cobrar, uma vez mais, tudo o que lhe tem sido feito há anos, décadas, séculos. Portanto, antes que a pandemia transforme África na profetizada vala comum, os boletins indicam, nas suas estatísticas, a morte a cantar de galo em vários currais do mundo, fora do continente berço, e nos galinheiros onde a sanidade era até então demonstrada como impecável. Antes que as valas sejam abertas em África, pela Europa segue o extermínio em massa e pelas Américas idem, idem aspas, com valores multiplicados que resultam em corpos putrefactos a inundar hospitais morgues, ruas e, como imprevisivelmente imprevisto, valas.

É mais uma crise que o mundo não tão cedo há-de esquecer. Mas crise é sinónimos de oportunidade, e há oportunidades a baterem às portas das sociedades, a rogarem para que as deixem entrar e possam mudar, moldar, os próximos tempos. O mundo, depois dessa, não será o mesmo. A arrogância das potências mundiais estará condicionada aos estigmas que elas próprias criaram, e os estados-formiga procurarão sobressair a custa dos milhares que estão a ser esmagados na luta. Alguns usarão os números, as estatísticas, para mostrar que merecem e devem continuar a governar, mas esses mesmos números servirão para outros defenderem o contrário; uns vangloriar-se-ão por não terem chegado ao nível de mortalidade de Ás e Bês, outros por terem conseguido controlar as cadeias de transmissão entre Cês e Dês antes que tudo implodisse; alguns conseguirão sair reeleitos, outros serão estrondosamente esmagados.

Politiquices à parte, os milhares de mortos não irão retornar, não importa quem venha a governar. Depois desta, o mundo poderá não ficar de cabeça para baixo, mas estará, certamente, com um equilíbrio diferente, pois, embora seja com os gigantes em vida que os pequenos se fortalecem, é apenas quando os gigantes tombam que os pequenos se glorificam. O vírus tombará, veremos depois quem sairá glorificado: a natureza, o homem ou os políticos.

In “2020 – O Ano dos Marginais”