Operação crítica em «Fabrício»: descortinamento da construção técnico-poética de Dario Silva

«Fabrício» é uma obra poética lançada pela Editora Patuá em 2018 e é da autoria de Dario Silva, heterónimo de Mardson Soares, nascido no estado do Piauí, Brasil, formado em Direito pela Universidade Católica de Brasília. Dario Silva é um jovem poeta brasileiro bastante misterioso na questão biográfica. Entretanto, interessa-me, sobretudo, sua identidade poética, a que ele me proporciona através dos versos que se afiguram na sua primeiríssima obra de poesia, esta que elegi para uma apreciação crítica na qual procurarei ressaltar os aspectos técnicos da sua poética.

O poemário é constituído por 10 textos poéticos, datados de 2013 a 2017, dos quais o último se afigura dividido em sete partes. Numa linguagem poética que lhe é bem peculiar, carregada de um certo erotismo, o poeta Dario Silva concebe vários sujeitos poéticos que se debruçam sobre um amor ora incondicional, ora platónico, ora inquieto, ora traidor, ora trapaceiro, ora cego, ora proibido, ora incompatível, juntando-se-lhes a paixão ardente, a saudade, a admiração, o rompimento, o adeus. Trata-se, pois, de uma obra poética que traz no seu pano de fundo, e em múltiplas dimensões, o amor, suas graças e vicissitudes. Confira-se uma pitada extraída da página 21:

– Oh, Erico, como és cândido!

Amar-te é escambo da ternura:

Lampeja o riso e o peito lacrima

Fica, Erico, com tua fel candura

Que oferto a ti minha estima

 Oh, Erico, como és cândido!

 Que me dizes, desta afronta, enamorado?

 Não me queres, como quero a plenitude?

 Se te silencias, não me volvas mais – pecado!

 E aceita, Erico, desta sorte, a solitude… 

Entende-se por construção técnico-poética um conjunto de técnicas literárias e princípios estéticos que norteiam a actividade literária de um escritor ou de um determinado grupo de escritores. Dario Silva, em «Fabrício», revela uma construção técnico-poética muito singular e de fácil identificação. Numa primeira apreciação, constata-se que o poeta preserva o princípio da uniformidade a nível da estrutura estrófica dos textos, ou seja cada texto mantém igual número de versos, excepto o décimo e último texto, «Damásio», que apresenta um certo desnivelamento mediante sua complexidade. Assim, o primeiro texto, «Antão», é constituído por cinco quadras; o segundo, «Erico», por cinco quintilhas; o terceiro, «Senhora», por seis quadras; o quarto, «Da Nua Anônima», por quatro quadras; o quinto, «Alarido», por cinco sextilhas; o sexto, «Sedição», por seis quadras; o sétimo, «Rute», por oito quadras; o nono, «Rosevaldo», por quatro quadras; o décimo, «Damásio», por três quadras e dois tercetos para a primeira parte, duas quadras para a segunda e cada uma quadra para a terceira, quarta, quinta, sexta e sétima partes. Esta marca de uniformidade estrófica não ocorre apenas em «Fabrício». No texto «Ao Piauí, as enrribas!», texto com que Dario Silva participou da 9ª edição da Bienal de Arte, Ciência e Cultura da União Nacional dos Estudantes, em 2015, o qual pode ser encontrado no famoso site António Miranda, ocorre o mesmo princípio. Trata-se de um texto poético dividido em três partes, possuindo cada uma delas vinte versos.

Outro aspecto inerente à construção técnico-poética de Dario Silva é a predominância de rimas. Numa altura em que reina o versilibrismo, através do qual os poetas afugentam a poesia prefixa ou dogmática, o poeta em questão (ainda) preza pelas correspondências ou coincidências de sons, apesar de existir um número muito reduzido de versos soltos ou brancos em seus textos. As construções rimáticas encontradas em «Fabrício» são passíveis de um estudo exaustivo sobre rimas. Entretanto, limitar-me-ei a ilustrar, no seguinte quadro, o esquema rimático de cada texto e as tipologias de rima quanto à disposição neles verificadas. Confira-se:  

  TÍTULO DO POEMA  ESQUEMA RIMÁTICO  RIMAS VERIFICADAS  
Antão  abcb / acdb / adbe / afef / agegRimas cruzadas
Erico  abccb / acdcd / aefef / aghgh / aieieRimas emparelhadas, interpoladas e cruzadas
Senhora  abba / cdcd / effe / ghgh / ibib / jklkRimas interpoladas, emparelhadas e cruzadas
Da Nua Anônima  abba / ccdd / eeff / ggff / Rimas interpoladas e emparelhadas
Alarido  aabcbc / aadedf / aaghgh / aaibib / aajbkkRimas emparelhadas e cruzadas
Sediçãoabba / ccdd / efgh / ijkl / amam / nonoRimas interpoladas, emparelhadas, encadeadas e cruzadas
Ruteabba / effe / ghgh / iijk / clml / nbbn / occoRimas interpoladas, emparelhadas e cruzadas
Renúnciaabccb / acdcd / aefef / aghgh / aijij / akkll Rimas interpoladas, emparelhadas, cruzadas e encadeadas
Rosevaldo  abcb / defe/ fghg / bibiRimas cruzadas
Damásio (Diálogo)I: abab / ccdd/ efef / ghi/ ghi II: abcd / aeef III: abba IV: aabb V: abab VI: abab VII: ababI: rimas cruzadas e emparelhadas II: rimas emparelhadas III: rimas interpoladas e emparelhadas IV: rimas emparelhadas V: rimas cruzadas VI: rimas cruzadas VII: rimas cruzadas

Dario Silva forja em seu poemário uma linguagem símile à da (ou pelo menos com resquícios da) poesia portuguesa da era renascentista, e ostenta uma relíquia vocabular que sempre pode obrigar o leitor a recorrer constantemente ao dicionário no exercício de leitura e/ou interpretação. Outrossim, o poeta manipula algumas construções figurativas que podem ser elevadas à categoria de arcaísmos literários do ponto de vista morfológico. Como se sabe, o arcaísmo pode ter uma função estilística, desde que seja usado intencionalmente e que ocorra para recuperar ou revitalizar a(s) virtualidade(s) de uma construção antiga ou antiquada. Em «Fabrício», isso acontece nas construções em destaque nos versos que se seguem: «Q’vista outra me penhora!», pág. 23 / «Afora Sua mestra, Q’ serei senão quebranto?», pág. 35 / «Soubesse q’amor eu alento», pág. 43 / «Palitaria el’ o riso fugido», pag. 51 / «Q’não querias Damásio de perto», pág. 52 / «Que morro, minh’alma é despida!», pág. 55.

Todos os elementos apresentados (desde os formais ou estruturais até aos estilísticos ou figurativos), em suma, concorrem para aquilo que designo por construção técnico-poética de Dario Silva, um poeta de quem ainda se pode falar bastante.