Operação crítica em «Um oceano, dois mares, três continentes» de Wilfried N’sondé: fragilidades técnicas da tradução de José Mena Abrantes

A tradução literária é, seguramente, o garante da expansão da literatura, da sua «invasão» e sobrevivência em territórios alheios, conferindo-lhe, de tal modo, um carácter universal ou transcendental. Trata-se, pois, de uma fiel amiga da produção literária, sendo aquela uma arte afim (admitindo aqui o tradutor como um (re)criador de um produto artístico) que muito deve respeito e «fidelidade» à obra artística original  e à língua para a qual a mesma obra é traduzida (L2). A tradução é um domínio científico que exige do sujeito tradutor uma formação académico-profissional ou um talento extraordinário. Por isso, não se admitem aventureiros para desempenhar algo de tamanha responsabilidade. É nesse espírito de responsabilidade e respeito pela arte e ciência da tradução que decidi eleger, para a minha apreciação crítica, uma itinerante obra que encontrou em território angolano uma privilegiada estadia. Visará, assim, o presente artigo analisar racional, crítica e dialecticamente a tradução do romance histórico do escritor congolês Wilfried N’Sondé que recebeu em português o seguinte titulo: «Um oceano, Dois mares, Três continentes». Trata-se de uma tradução executada por José Mena Abrantes, revisada por Paul Barascut, director da Alliance Française de Luanda, editada e publicada pela Mayamba Editora.

José Mena Abrantes ou simplesmente Mena Abrantes dispensa apresentações na medida em que se configura numa importante figura da célebre Geração do Pós-Independência. Porém, é imperioso que se diga aqui que, pela primeiríssima vez, o abordarei não nas habituais vestes de poeta ou dramaturgo, mas sim nas de um tradutor. Isso para mim constitui um motivo de regozijo; primeiro, por adicionar mais um ofício no seu já preenchido currículo, e segundo, por ser ele, um angolano, a fazer a primeira tradução desta obra artística vencedora do importante prémio «Ahmadou Kourouma», edição 2018. Com isso, esperamos, afincadamente, que este corajoso acto de Mena Abrantes sirva de inspiração para futuras traduções, sobretudo de autores angolanos para as demais línguas do mundo.

Em «Um oceano, Dois mares, Três continentes», José Mena Abrantes propõe uma tentativa de tradução literal, mas incorre, tecnicamente, em certos casos, numa autêntica corruptela de sentidos ao traduzir um conjunto de palavras do francês cuja equivalência em português se desvincula do seu sentido original. Não condeno o uso da tradução literal[1], aliás, compreendo e aceito que Mena Abrantes tenha, inevitavelmente, optado por este tipo de tradução mediante as semelhanças que existem entre as duas línguas envolvidas neste processo (francês e português). Porém, observa-se do tradutor uma falta de apuração semântica ao privilegiar a palavra e não o sentido que esta carrega em si, apresentando, assim, uma tradução longe da qualidade exigida. Com isso, Mena Abrantes revela-se como um tradutor de palavras e não de sentidos, o que me permite classificá-lo como «tradutor de palavras». Não se traduz, geralmente, a palavra. Traduz-se o significado que a palavra contém. Desconhecerá Mena Abrantes este princípio? Não terá tido noção de que, apesar de o francês e o português serem línguas muito próximas, a tradução devia ser cautelosa, ponderada e sobretudo contextualizada? A estas questões, saberá melhor responder o próprio tradutor.

Porque a verdade crítica passa também pela demonstração, passo agora a distinguir alguns exemplos que evidenciam a(s) fragilidade(s) técnica(s) da tradução literal de José Mena Abrantes:

  • Ex.1: Je tombai même à genoux, en vain. Vexé, et à vrai dire inquiet de l’hostilité grandissante de certains à mon égard, je me précipitai en direction de la cabine de  Louis de Mayenne. Pág. 72§2
  • Caí mesmo de joelhos, em vão. Vexado, e a dizer verdade inquieto com a hostilidade crescente de alguns a meu respeito, precipitei-me em direcção ao camarote de Louis de Mayenne. Pág. 72§2
  • Ex.2: Nous nous cachions pour oublier la folie des hommes, je l’encourageais à murmurer n’importe quoi à mes oreilles pourvu d’oublier, au mois pour un instant, la symphonie des âmes torturées remontant de la fosse, […] Pág. 103§2
  • Escondíamo-nos para esquecer a loucura dos homens, eu encorajava-o a murmurar não importa o quê aos meus ouvidos desde que pudesse esquecer, pelo menos por um instante, a sinfonia das almas torturadas que se elevava do porão, […] Pág. 96§2
  • Ex.3: En pays Kongo, le divin m’avait été enseigné dans un bain d’amour d’où toute crainte était exclue, mes pairs avaient rarement évoqué l’enfer et le péché.  Pág. 236§2
  • Em país Kongo, o divino tinha-me sido ensinado num banho de amor, de onde todo o receio estava excluído, os meus pares tinham raramente evocado o inferno e o pecado. Pág. 204§2

No primeiro exemplo supracitado, o sujeito tradutor propõe, no lugar do advérbio francês «même» – que pode significar «mesmo, até, sequer» – o seu equivalente português «mesmo», quando podia perfeitamente optar pelo advérbio «até» que se enquadraria melhor naquele contexto frásico. De igual modo, no lugar do também advérbio francês «à vrai dire» – que pode significar «na verdade, em verdade, de facto, etc.» – o tradutor propõe literalmente, embora de modo inverso, a expressão «a dizer verdade» que não se adequa ao sentido do advérbio francês nem ao contexto frásico do texto original. Uma vez corrigidos os dois itens aos quais acabo de me referir, obteríamos uma tradução ainda literal, mas fora de perigo, ou seja, longe de qualquer corruptela semântica:

  • «Até caí de joelhos, em vão. Vexado, e de facto inquieto com a hostilidade crescente de alguns a meu respeito, precipitei-me em direcção ao camarote de Louis de Mayenne».

No segundo exemplo, José Mena Abrantes, em vez da expressão «n’importe quoi» – que pode significar «qualquer, qualquer coisa, etc.» – propõe literal e equivocadamente o seu equivalente português «não importa o quê» que, a meu entender, não possuindo o mesmo valor semântico em relação ao sentido original daquela expressão, podia e devia ser substituído por «qualquer coisa», a fim de oferecer ao público leitor lusófono uma tradução melhor conseguida. Já no terceiro exemplo, o tradutor, destemidamente e sem qualquer respeito ao sentido das palavras, sugere, literalmente, no lugar de «en pays Kongo» o seu equivalente «em país Kongo», uma vez que «em terras do Kongo» ou «em território congolês» seriam as opções mais viáveis para uma tradução que se quer mais próxima do seu sentido original:

  • «Escondíamo-nos para esquecer a loucura dos homens, eu encorajava-o a murmurar qualquer coisa aos meus ouvidos desde que pudesse esquecer, pelo menos por um instante, a sinfonia das almas torturadas que se elevava do porão, […]»
  • «Em terras do Kongo, o divino tinha-me sido ensinado num banho de amor, de onde todo o receio estava excluído, os meus pares tinham raramente evocado o inferno e o pecado».

José Mena Abrantes incorre também e variadíssimas vezes em uma tradução ruidosa. Chamaria aqui de ruidosa aquela tradução que resulta imperceptível ou perturbadora, produzindo, consequentemente, um efeito cacológico no processo de leitura e/ou interpretação textual. Tais cacologias se estabelecem na tradução de Mena Abrantes por diversas razões: em alguns casos, resultam de uma tradução literal cuja equivalência não se encaixa à estrutura funcional do português e, em outros, resultam de uma forte interferência linguística entre o francês e o português, desembocando, de tal modo, numa tradução crioula e confusa ou resultando ainda de uma fragmentação de palavras que não aparecem registadas na tradução por conta do esquecimento ou ignorância do tradutor. Consideremos os seguintes exemplos:

  • Ex.1: Sur le chemin du retour vers la capitale, Alfonso Ier décida qu’à l’avenir il s’abandonnerait corps et âme au culte de Jésus-Christ. Pág. 19§2
  • No caminho do regresso à capital, Afonso I decidiu que no futuro iria abandonar corpo e alma ao culto de Jesus Cristo. Pág. 24§4
  • Ex2: Ma vue s’était à nouveau dégradée pendant mon sommeil, je distinguais à peine les coupoles de la place Saint-Pierre noyée dans un brouillard. Pág. 262§1
  • A minha visão tinha voltado a degradar-se durante o sono, quase não distinguia as cúpulas da praça São Pedro mergulhadas numa névoa. Pág. 225§1
  • Ex3: Je croulais sous le poids des remords au souvenir de la barbarie qui avait régné sur Le Vent Paraclet […]  Pág. 141§1
  • Eu desabava com o peso dos remorsos ao lembrar a barbárie que tinha reinado no Le Vento Paraclet […] Pág. 127§1
  • Ex4: Un système qui aboutit à la déshumanisation de mes frères bakongos et de l’ensemble des peuples du continent africain au sud Sahara […] Pág. 121§2
  • Um sistema que conduziu à desumanização dos meus irmão bakongo e de todos os povos do continente ao sul do Sahara […] Pág. 110§2

No primeiro exemplo, José Mena Abrantes traduz «il sabandonnerait» para «iria abandonar», ocultando o «s’» que, em português, equivaleria ao pronome reflexivo «se». Esta supressão tê-lo-á desviado redondamente do sentido original e conduzido a uma tradução ruidosa, pois o verbo pronominal francês «s’abandonner», obedecendo a uma estrutura léxico-semântica semelhante a do português, não equivaleria a «abandonar», mas sim a um também verbo pronominal que podia ser «abandonar-se» ou «entregar-se». Entretanto, por uma tradução menos ruidosa, sugere-se «[…] iria abandonar-se de corpo e alma ao culto de Jesus Cristo» ou «[…] iria entregar-se de corpo e alma ao culto de Jesus Cristo».

No segundo exemplo, o sujeito tradutor transpõe literalmente «place Saint-Pierre» pelo seu equivalente em português «praça São Pedro». Todavia, na página 227§1, ele transpõe o mesmo nome «place Saint-Pierre» por «praça de São Pedro», acrescentando, desta vez, a preposição «de» entre as palavras praça e São Pedro. Observa-se, com isso, uma elevada falta de coesão e uniformidade na tradução de Mena Abrantes. Que ficasse ele com a primeira opção (praça São Pedro) ou com esta segunda (praça de São Pedro) que, a meu ver, estaria muito melhor contextualizada.

No terceiro exemplo, ao transpor «Vent» pelo seu equivalente português «Vento», resultando em «Le Vento Paraclet», José Mena Abrantes incorre em uma interferência linguística que poderá ter sido involuntária ou, talvez ainda, poderá ter sido uma falha redactorial ou editorial. Já no quarto exemplo, o sujeito tradutor, talvez por ignorância ou esquecimento, incorre em uma omissão da palavra «africain» que conheceria, em português, a equivalência de «africano». Consequentemente, em «[…] todos os povos do continente ao sul do Sahara», fica-se sem saber de que continente se referia o narrador. Em contrapartida, ao se ler o texto original, na página 122§1, apercebe-se de que se tratava do continente africano. Essa omissão poderá constituir-se, em algumas vezes, como ruído e, em outras, como ambiguidade lexical.

Porque é do meu e do conhecimento público, e como está evidenciado na ficha técnica, a presente edição foi lançada em alusão ao FESTIKONGO, uma singela homenagem a Mbanza Kongo, Património Mundial da Humanidade. Não se precisa gastar muita massa cinzenta para perceber que terá sido essa uma das principais razões que levou a tradução de José Mena Abrantes a uma publicação precipitada. Com isso, «Um oceano, Dois mares, Três continentes» chega às mãos do público com elevadas cacografias, resultantes das incoesões gráficas, textuais e até mesmo editoriais. Assim, ao longo de uma leitura minuciosa, lê-se, por exemplo, «novissimo» em vez de «novíssimo» (pág. 23§2), «fétiche» em vez de «fetiche» (pág. 49§1), «nearlandeses» em vez de «neerlandeses» (pág. 67§2), «contruíam» em vez de «construíam» (pág. 119§2), «deixava.me» em vez de «deixava-me» (pág. 130§1), «taratarugas» em vez de «tartarugas» (pág. 163§1) e outros itens que descredibilizam, até certo ponto, a qualidade do produto artístico por conta de uma publicação apressada.

Um outro aspecto que chama a minha atenção tem que ver com aquilo que chamaria, talvez, de «infidelidade» na tradução. Tal infidelidade processa-se na abertura e não abertura de novos capítulos. Na página 55§, por exemplo, o tradutor ou talvez o editor (eles saberão melhor quem foi) faz daquele que seria o terceiro parágrafo da página 53§ um novo capítulo, quando, no texto original, o referido capítulo se constitui apenas como terceiro parágrafo da página 52§. O mesmo acontece na página 71§, onde aquele que seria o segundo parágrafo da página 70§, transforma-se em novo capítulo, sendo que, no texto original, o referido capítulo seria o segundo parágrafo da página 70§. Já na página 157§4, em inconformidade com o texto original, verifica-se o contrário dos dois primeiros casos, isto é, aquele que seria um novo capítulo se constitui como o terceiro parágrafo da página 157§.

Apesar de todas estas fragilidades, José Mena Abrantes, imbuído de um espírito de coragem, deixa ao público leitor em língua portuguesa uma tradução com uma qualidade minimamente aceitável. Contudo, espero ver, nas próximas vezes, um Mena Abrantes mais contextualizado e mais maduro nas vestes de tradutor. Portanto, com o sentimento de dever cumprido e acreditando firmemente no poder da crítica que aqui manejo, almejo que, num tom de humildade e responsabilidade, essas fragilidades sejam levadas em consideração e futuramente corrigidas. Outrossim, dentro da humildade e respeito científicos, aguardo por uma contracrítica, caso o tradutor ou qualquer outra pessoa não esteja de acordo com a minha visão crítica em torno das fragilidades técnicas encontradas na tradução de José Mena Abrantes.


[1] Só é condenável uma tradução literal quando se usa a técnica da equivalência sem ter em conta o contexto em que as palavras se inserem, isto é, quando o tradutor transpõe de uma língua para outra palavras que podem ter equivalência do ponto de vista lexical e não ter equivalência do ponto de vista semântico.