Os bichos também têm direitos

Faz muito tempo que venho mostrando os meus desagrados pela imposição de se  madrugar para ocupar a bicha para o tratamento de qualquer documento que seja nas capitais do país. Fiquei estupefacto pelo facto de que, para entrar na acta dos nados vivos ou dos mortos, os cidadãos são forçados a pernoitar nas portas das conservatórias, lojas de registos ou SIAC, retirar uma senha imaginária, pois é obrigatório ocupar bicha ou marcar o lugar com pedras, ou mudas de roupa e esperar até às 9 horas para receber um papelzito escrito à mão numa “feia caligrafia”. Para o levantamento do tal documento são outros trezentos! Mais outra bicha. Filha da mãe da pessoa que instituiu a prática das bichas em Angola. É que nelas um gajo é mesmo remetido à bicho e humilhado por um direito que figura no artigo 30° da Constituição República de Angola, Capítulo II, Secção I, o Direito à vida. Estes gajos deviam ser detidos por essas inconstitucionalidades. Para levantar ou depositar o dinheiro nos bancos e ATM, é bicha; para comprar pão, é bicha; combustível, é bicha; ser atendido nos hospitais, é bicha; mas são bichas bem longas! Não se pode esquecer que os bichos, que andam a cumprir os seus deveres, também têm direitos.

Escrevo hoje esse texto porque senti na pele o efeito desses abusos, mas não permiti que me violassem pela segunda vez. Fui ter com o chefe, o conservador, pois o gajo do servidor público, idiotamente, às 12 horas, depois de eu ter dado uma mbaia no serviço, recusava-se de me atender.

“Boa tarde, senhor, vim levantar um assento de nascimento…”

“Senhor, já recebemos e atendemos o número de fichas limite para hoje…”

“Mas para levantar o meu documento também tenho de receber ficha?!”

Sem esperar pela resposta dele, dirigi-me à sala do conservador. Havia mais uma meia dúzia de pessoas à espera para fazerem as suas reclamações. Tão logo vi o seu adjunto a sair, interpelei-o e expus o meu descontentamento de que não estava certo nós, cidadãos que pagam os seus impostos, virmos e, vezes sem contas, faltarmos no trabalho, para recebermos os nossos documentos, e o senhor da recepção dizer-nos que têm números limites de atendimentos por dia. Olhando para a minha indumentária – fato e gravata e uma pasta presa nas mãos –, pediu-me o recibo e dirigiu-se ao mesmo senhor que recusara me atender. Olhou para mim e pôs-se a teclar à procura do meu documento. Sentei-me à frente dele e olhava-o fixamente. Como o assento não aparecia, pediu-me para voltar no dia seguinte, agora com mais delicadeza.

“Desculpe, o senhor podia voltar amanhã com a cédula e vir ter directamente comigo… não precisa mais de receber senha.” Fiz um sorriso de esguelha e fui-me embora alegre por não ter de madrugar e nem aguentar bichas.

Este assunto, que aconteceu há três meses e que se tem repetido, advém do facto de que há pouco menos de duas semanas, fui surpreendido vendo na rua homens do Serviço de Investigação Criminal, fazendo uma perícia. Julguei que se tratasse de um agente económico que constatava a subida dos preços nos armazéns da vizinhança, como consequência do IVA e da incerteza do término do confinamento por causa da pandemia que já se arrastava a largos meses pelo mundo todo. Por isso, esbocei um “VAI à merda” e continuei os meus passos plácidos. Mais tarde, notei que o chão de barro da rua estava avermelhada de sangue.  Havia sangue na entrada da rua onde eu devia entrar e marcas de um corpo que tinha sido removido há segundos. O sangue ainda estava quente e efervescente. Eu vi. Mesmo sem procurar por informações, apareceu alguém que me narrou que o assassinado foi degolado e esfolado quando ia à caminho da identificação para ocupar a bicha para tratar o B.I.

“Maldita bicha! Maldito sistema que nos dá o direito à cidadania a troco do risco de riscarmos a vida do livro dos vivos!” Exclamou.

Agora, o coitado também vai ter de fazer mais outra bicha para ter o direito de ser registado no livro dos mortos. VAI à merda as bichas nas identificações e lojas de registo, são desumanas e humilhantes.