Os Paradoxos de Heduardo Kiesse, fazedor de poemografias

Escritor, praticante da arte visual, licenciado em filosofia e futuro mestre em Cultura e Comunicação; Heduardo Kiesse, angolano, residente em Portugal, é uma pessoa de personalidade e talento singular, artista que se destaca pela unicidade do seu trabalho, adestra o público com fotografias e vídeos com palavras em movimento. É decerto um astro que já eclodiu.

Quando questionado sobre quem é, na verdade, Heduardo Kiesse, o mesmo diz que é alguém que ele próprio vai descobrindo e conhecendo, nas suas manifestações, naquilo que ele tenta mostrar. Alguém que ele próprio não conhece, até porque não está definido, mas essencialmente é alguém que gosta de escrever, gosta de poesia. É alguém que gosta de criar, tendo descoberto tal gosto de forma espontânea, ou por uma brincadeira, depois percebeu que valia a pena investir devido a receptividade do público. Postando tudo no Facebook e nos blogues, as pessoas foram manifestando o seu gosto pelo que fazia através de comentários, através de partilhas, a razão pela qual continuou a trabalhar e não tem intenção alguma de parar. É editor do blog Fotomorfoses e da página ParadoXos no Facebook.

Palavra & Arte: O trabalho do Heduardo é mundialmente conhecido através da página ParadoXos, no facebook. Para já, o que é a ParadoXos? Como começou?

Heduardo Kiesse: A ParadoXos nasceu em 2007 através de um blog, que ainda mantenho, mas com o surgimento do Facebook os blogs perderam um bocado a proeminência que tinham. Essencialmente escrevia mais poesia tradicional, com versos, com rimas… Escrevia também prosa poética; depois houve uma necessidade de dar imagem às palavras ou, pelo menos, casar a imagem com a palavra. Então fui fazendo inscrições, frases curtas, alguns versos, em vários materiais, como pedras, esferovite, gelo, prego; materiais comuns. A esses materiais comuns eu tentei dar um outro toque, uma outra dimensão, transformar aquilo que é comum em algo mais ou menos fora do comum.

P&A: Para quem acompanha o seu trabalho, denota-se com poucas frases de autores angolanos. A que se deve?

HK: De angolanos conceituados eu tenho alguns trabalhos, posso referir, por exemplo, o Ondjaki e Agostinho Neto. Esses são, pelo menos, dois autores angolanos com cujas frases já trabalhei. Por outro lado, há algumas páginas de poetas angolanos, poetas como eu, – não me refiro àqueles poetas reconhecidos internacionalmente, mas os poetas que estão a começar – que tenho tido o cuidado de divulgar através da minha página. Sempre que encontro uma página divulgo. Tento conhecer a poesia que se faz em Angola. Apesar de viver fora há vinte e sete anos, tento estar por dentro através da divulgação desses poetas.

P&A: Assim sendo, como vê a poesia em Angola?

HK: Acho que a poesia em angola está a ser bem tratada, e sempre esteve, até porque foi através da poesia que o povo angolano, justamente em situações, por exemplo, de opressão, usou-a como veículo de comunicação. Em momentos de falta de uma tal liberdade de expressão, sempre usamos a poesia, música, etc. No entanto, desliguei-me da poesia convencional e dei um salto à poesia visual. E nesse caso, eu vejo que a nível de Angola, é muito difícil encontrar um poeta visual.

P&A: Falando nisso, quem são as suas influências? Há alguma angolana dentre elas?

HK: Tive e tenho várias influências, várias referências também. Há alguns autores que, de facto, tiveram influência em mim. Há um nome, por exemplo, não angolano, mas moçambicano, que é o Mia Couto. Penso que esse teve uma influência melhor ainda no meu trabalho, devido àquela brincadeira com as palavras, àquela criatividade, invenção, por outras palavras; penso que teve uma influência mais significativa em mim.

P&A: Por outro lado, indo agora para algo de certa abrangência, como se mantém a par das novidades da literatura angolana?

HK: Faço parte de duas associações muito ligadas a África, a Angola, e uma delas tem uma vertente muito literária, de divulgação da literatura feita em áfrica, em geral, e isso é uma forma de estar a par do que tem acontecido. Por revistas, também. Há sempre uma forma de estar ligado, não só pelo Facebook.

P&A: Há tanta verdade no que trazem as suas frases sejam em foto ou vídeo. Será que, ao fazê-lo, pensa no impacto que terá nas pessoas? 

HK: Boa pergunta. Muito forte; forte porque, no princípio, eu tinha esse cuidado. Antecipava a reacção dos outros aquando da visualização das fotos ou dos vídeos. A dada altura, eu percebi que não era por aí; acho que facilmente eu iria desistir, iria me perder se continuasse preocupado em agradar a gregos e a troianos, como se costuma dizer. Eu acho que amadureci um pouco e, actualmente, quando faço, já não me preocupo com essa reacção; independentemente daquilo que os outros irão pensar ou sentir, eu faço. Quando o artista está demasiado centrado nos outros, acho que ele se limita, acabando por se autodestruir e ficando preso à opinião alheia. E acho também que isso é algo que destrói a criatividade. Acho que, neste sentido, o artista tem que ser livre, tem que criar. Alguns irão gostar, outros não, e isso também é bom.

P&A: As pessoas têm visto o “Poema em Movimento” no youtube e é um trabalho decerto admirável. E como tudo o que é admirado, surge a questão: como o autor se prepara para fazer aquilo? Há alguma preparação em particular?

HK: No meu caso, não há qualquer preparação. Não há uma preparação prévia, ou muito elaborada, a inspiração bate no momento e então crio. É isso que também me estimula, porque eu acho que se eu preparasse não sairia tão natural, com tanta simplicidade e espontaneidade. A ideia bate-me, inspiro-me numa coisa qualquer, num sentimento ou acontecimento e a coisa acontece.

P&A: Pode-se dizer então que o Heduardo vai a um determinado lugar e aparece logo uma determinada frase. Será que enquanto passeia, vê e pensa em algo e ali mesmo faz o trabalho?

HK: Boa pergunta. Neste caso, geralmente já tenho a frase e da frase crio o contexto, crio a imagem, crio o suporte, e às vezes, é o contrário. Vejo a pedra, e penso: “essa pedra, precisa de uma frase para ela”, então busco a frase de um autor que eu quero homenagear ou uma frase minha. Às vezes, é espontâneo. Eu costumo fotografar numa fábrica abandonada que há aqui, e é um local para mim muito inspirador. É um local com grafites, com lixo no chão, um local comum, rústico, e isso para mim desperta inspiração.

P&A: Pode-se então afirmar que prefere trabalhar em silêncio. Mas se importa se houver um pouco de barulho ou, talvez, uma música?

HK: Eu acho que gosto mais de trabalhar em silêncio. Mas com influência do barulho. Ou seja, é aquele ruído que me influencia a criar. De todos os ruídos da minha própria vida, dos ruídos íntimos, os barulhos bruscos, aquele tumultuo, aquele terramoto íntimo, efectivo, têm influência naquilo que eu faço. Tentar criar com pessoas ao lado, só de saber que estou a ser observado, não me deixa muito à vontade, já percebi isso!

P&A: Silêncio, normalmente, envolve isolamento, ou seja, não gosta de ser assistido enquanto produz, mas quanto ao assistir o já produzido? Ou seja, para quando uma exposição?

HK: Eu ia adorar. Uma exposição em Angola seria a realização de um sonho. É um sonho daqueles que… sinceramente, não tenho palavras. Seria uma coisa espectacular. Mas não tem acontecido, nem aqui tem surgido oportunidade. Quer dizer, aquilo que eu faço, fora do Facebook, nem sempre é bem abraçado, nem sempre se consegue conquistar as pessoas que, de facto, teriam alguma influência para exposições, divulgações, e ir um pouco mais longe, mais além daquilo que é o mundo virtual. Eu, às vezes, sinto muito isso, estou ali muito fechado no Facebook, as pessoas comentam, divulgam, partilham, mas quando tento dar um passo maior, já encontro barreiras. Barreiras no sentido de furar o mundo literário comum, tradicional. Tento participar em concursos, concorrer a bolsas literárias, mas não encontro apoios; instituições que podiam apoiar, simplesmente, não encontro.

P&A: Como explica essa falta de apoio e/ou interesse por parte dos possíveis patrocinadores?

HK: Pode não ser exactamente falta de interesse, este poderá eventualmente existir, mas penso que está mais ligado a uma resistência, a uma falta de aceitação daquilo que é o novo, daquilo que é diferente, daquilo que, eventualmente, se possa distinguir daquilo que é comum, aquilo que é o quotidiano. Eu acho que é isso. É uma falta de disponibilidade daquilo que é novo, daquilo que é diferente. Se eu escrevesse a poesia convencional, acho que seria muito mais fácil. O engraçado é que eu não desisto, apesar de estar a fazer algo não comercial, mesmo assim mantenho a minha onda.

P&A: Exactamente, é preciso persistência e foco. E falando da tua onda, no trabalho que faz, os poemas não podem ter mais de um verso? Um soneto por exemplo?

HK: Não. Não dá. Não é aconselhável. O impacto, a mensagem, perde-se um bocado. Quanto mais a frase for sucinta, completa, resumida, melhor. Depois a pessoa que visualiza é que cria o desenvolvimento.

P&A: Quanto a temática, é visível a diversidade, ainda assim, há algum tema que prefere não abordar por uma ou outra razão?

HK: Há o tema da morte que eu, às vezes, gosto de fugir, mas é quase impossível, é um tema que está presente naturalmente, mas, às vezes, evito tocar. A política também é um tema que tento fugir, mas volta e meia também caio nela. Mas não há temas tabus, temas proibidos; não há temas que recuso.

P&A: Atitude digna de um profissional com um vasto universo de temas ainda a explorar para muitos trabalhos desenvolver. Mas dos já feitos qual seu o favorito?

HK: Para mim, é suspeito falar sobre aquilo que eu próprio faço, mas gosto muito dos vídeos. Há uns vídeos que faço, e que aos mesmos chamei “Poemas em Movimento”. A poesia é muito isso, a poesia que todos conhecemos do verso, da rima, a chamada poesia convencional ou tradicional. E eu, com aquilo que faço, tentei dar movimento às palavras. Não só aquele movimento estático que tem a fotografia, mas dar mesmo um movimento explícito, pôr as palavras a mexer, dar som ao poema. Posso dizer que tenho uma foto que diz “É tão longe voltar atrás”. Gosto porque tem muito de mim. Às vezes, não sei se as pessoas percebem, mas é uma coisa muito forte para mim.

P&A: Mudando um pouco de assunto, diz-se que as mulheres, na poesia, sentem-se mais à vontade do que os homens, para expor os seus trabalhos nessa área. O que pensa disso?

HK: Sim, é verdade. Há quem ainda vê a poesia muito ligada ao lado feminino, porque, por norma, a mulher é mais sensível. Mas, a verdade, é que o poeta, aquele que se quer manifestar, tem sempre uma necessidade irreprimível de manifestar as suas folhas, a sua solidão, a sua existência; este não se priva, independentemente daquilo que os outros possam pensar. Eu já não ligo isso, já ultrapassei essa fase!

P&A: Falando de fases, é de admitir que a qualidade do seu trabalho será um grande legado. Há algum herdeiro, um Heduardo Kiesse Júnior?

HK: [Risos] Não, não há um Heduardo Júnior. Embora ter filhos seja um sonho meu. Estou numa fase da minha vida em que eu também sou ainda um filho em desenvolvimento, então penso que seria um acto egoísta. Egoísta na medida em que, se eu tivesse um filho nessa fase, seria mais a pensar em mim do que a pensar nele.

P&A: Quando vier a tê-lo, pensa em influenciá-lo com a arte? Seja literatura ou outra expressão artística, de modos, talvez, a dar seguimento ao legado “ParadoXos” ou mesmo “Poemografia”?

HK: Sim. Espero que ele seja influenciado pelo maior número de referências. Acho que isso vai tornar a relação dele mais sólida. Em termos da arte, eu acho que a arte é um mundo tão restrito, restrito no sentido elitista. Aquele pobre, o “zé povinho”, faz arte em casa, porque a arte é para um grupo de pessoas que monopolizam e ganham bastante a custo da arte, exploram a arte, prostituem a arte, e assim, esses são os verdadeiros artistas do lucro. Agora, aquele artista que veste a camisola, que faz as coisas com amor, independentemente daquilo que ele vai ganhar ou não, esse é sempre menos, infelizmente. A esse não é dado o devido valor, porque não faz arte com a intenção do comércio, faz porque sente, faz porque aquele tumulto íntimo o leva a criar, o inspira, o incentiva. Agora, um filho meu a seguir a arte, espero que não, espero que ele tenha outras referências, que não vá por aí, senão vai morrer pobre [Risos]

P&A: Então, falando a sério, não vale a pena emergir nesse mundo?

HK: Não, porque é um mundo muito complicado, é um mundo que não dá auto-sustento. Não te dá o ganha pão.

P&A: Mas o Heduardo faz por paixão! Não vale a pena?

HK: Vale, sem dúvida. Por paixão, por gosto, por prazer, sim, mas nunca pensando que daí irá advir um ganha pão. Mesmo no lançamento de um livro. Porque a gente sabe como é, os artistas passam grandes dificuldades, e só mais tarde essa paixão é reconhecida. E muitas vezes, quando essa paixão é reconhecida, o lucro que daí advém não é para o artista, porque esse aí, decerto, já foi, e quem ganha são os outros. Por exemplo, os grandes escritores, músicos, etc., os grandes poetas, no seu tempo, não foram devidamente reconhecidos, não tiveram o merecido valor.

P&A: Foi uma honra, para essa revista ter estado Na Palavra Com Heduardo Kiesse.

HK: A honra foi toda minha, muito obrigado.