Haverá alguém no auditório que acredita que o Spoken Word não seja literatura?
Numa das mensagens enviadas pela organização deste evento, lia-se «Spoken word versus Literatura», o que evidenciaria uma relação de oposição entre as duas manifestações artísticas. No entanto, ao conectar-me ao Facebook, deparei-me com uma publicidade eletrónica, a respeito deste evento, na qual se lia «Spoken word e Literatura». Sabe-se que o «e», na condição de conjunção coordenativa copulativa, tem um valor aditivo e, numa análise mais filosófico-descritiva, pode encerrar a função de um conector adversativo, o que, de igual modo, sugeriria oposição igualmente ao tema anterior.
A pergunta de partida ou provocação por via duma interrogação retórica não veio ao acaso. Surge, na verdade, na sequência das múltiplas discussões entre os amantes do «spoken word» e os amantes da «poesia convencional».
A última edição do prémio Nobel de literatura (2016) foi entregue a um cantor e compositor norte-americano conhecido como Bob Dylan. Tal decisão terá levantado várias objecções no cenário literário internacional. As opiniões fizeram-se diversas. Uns afirmavam que Dylan não poderia ser galardoado com tal prémio, porque não era escritor. Outros diziam que sim: Dylan era um justo vencedor. Fiquei dividido, entre aqueles que consideraram a decisão supérflua, na medida em que o Nobel é para os melhores; e também me situei entre aqueles que acreditavam que o compositor poderia eventualmente vencer o Nobel desde que a sua obra estivesse, em termos estéticos, acima das obras literárias contra as quais concorreu e eleita por um grémio ou colégio cuja seriedade é questionada, sempre que o vencedor é um rosto não muito conhecido. Compreendo que o folclore presente nas composições do cantor americano remeta-nos a uma instituição que tem sido sobrevalorizada, no caso a oratura; entretanto, julgo que nessas decisões devemos nos afastar do politicamente correcto com vista a se escolher sempre a obra mais bem construída. Não está em causa a qualidade da obra de Dilan, que se ressalte isso, mas era supérfluo bater tantos bons escritores vivos.
A poesia de Dylan, afirma Paul Zumthor, insere-se numa tradição poética oral anterior à literatura como a conhecemos hoje, que parte de Homero ao cantor norte-americano por um viés antropológico. Zumthor adverte que o surgimento do rap (spoken word) e do folk, como representação dessa oralidade, pode marcar o declínio já verificado da escrita como cultura livresca. Eu diria que essas manifestações inserir-se-iam no sistema literário como mais um género, e provar que a o sistema literário, ao fim de mais de dois mil anos, continua aberto e em evolução.
Trouxe essa discussão sobre o Nobel para dizer que a Literatura é um sistema mais amplo do que aquele que muitos imaginam, podendo abarcar os textos literários convencionais (líricos, narrativos e dramáticos), como também composições musicais, peças teatrais e etc., desde que as cataloguemos como literatura.
O Spoken Word é uma modalidade artística que encerra o lírico, o narrativo e alguma dramatização no acto da performance. A história e a poesia são ditas partindo quase sempre de um texto escrito. Portanto, o Spoken Word pode, na verdade deve, ser considerado LITERATURA, na medida em que, este lexema apresenta-se também como sinónimo da expressão «Arte Verbal». Ademais, toda a obra escrita é, indubitavelmente, uma representação gráfica de um pensamento. Em termos técnico-formal o Spoken word é escrito em forma de prosopoema e os autores, frequentemente, interpõe recurso à rima emparelhada com vista a garantir a riqueza do estrato sonoro.
O Spoken Word é uma expressão genérica proveniente da cultura Hip Hop que engloba textos narrativos, textos líricos e, com maior incidência, textos híbridos. Em vista disso, não nos é conveniente admitir a expressão “Poesia Dita” como o equivalente linguístico português assertivo da expressão anglófona “Spoken Word”.
O Spoken Word é a expressão artística em que uma poesia ou história é apresentada por um artista ao público por via da oralidade. Tal como a declamação de poesia, pode ser acompanhado de fundo musical acústico (guitarra, batuque, kisanji) ou electrónico, com gestos, tons de voz e expressões faciais diferentes, segundo cada performance. É uma forma de expressão artística bastante mediática que vai ganhando ao longo dos anos simpatia em quase todo o planeta. É uma arte de contacto directo com a audiência, com temas de interesse geral e actual, com uma linguagem coloquial, mantendo laços de afinidade não só com a música rap (em termos de performance – os gestos) como também com a tradição oral (as histórias), com o teatro (monólogo e apartes), e ainda, no campo da música, com o Jazz, o Blues e a Folk Music.
Começou a ser usado no começo do século XX nos Estados Unidos e se referia a textos gravados e difundidos por via da rádio, e foi muito difundido nos anos 90 com o surgimento dos Slams.
O Spoken Word nasce nos finais da década de 60, antes mesmo da definição do Hip Hop como uma cultura autónoma, surgindo como uma das formas de resposta às más condições de vida, ao preconceito racial e à barbaridade com que os negros e os latinos são/eram submetidos em seus guetos.