A poética netiana como emancipação intelectual

…Exemplo no poema Ópio: “casaram-me com a tristeza/minha terra negra e de sol/ não tive infância nem tive mocidade/não tive alegria da primeira idade por causa deste noivado prematuro e senil/(…)”.

 

Na poética Netiana, a emancipação intelectual dá-se muito pela via do pré-concebido, facto que não impossibilita a coexistência com a consciência intuitiva, pois a intenção do sujeito poético é pré-determinada pela consciência do contexto. A emancipação intelectual, no presente estudo, refere-se, a prior, ao grau elevado da transposição do sujeito. O processo de emancipação intelectual poderá decorrer de forma lenta ou dinâmica, mas não numa linha recta. Embora prazerosa, percorrer sobre a Poética Netiana, como Emancipação Intelectual, não se consubstancia tarefa fácil. Parte-se, desde já, da controvérsia instalada pelas diferentes sensibilidades literárias e académicas sobre a sua poética.

Primeiro, por o ser humano ser uno e indivisível, fica difícil separar o poeta do político. Segundo, tanto a consciência política como a poética estão intrinsecamente na sua cosmo-produção. Terceiro, para alguns segmentos da literatura angolana, analisar ou criticar uma obra é quase sempre entendida no prisma ideo-partidário e não ideo-artístico. Sem a pretensão de se posicionar, por exemplo, julgo que o adjectivo “Maior” que é antecedido pelo substantivo comum “poeta”, apesar de se enquadrar na perspectiva da literatura enquanto instituição, tem sido mal abordado. Outrossim, apurar se o é ou não, requereria, da parte de todos intervenientes, comunicações desprovidas de egos. A princípio, reconhece-se existir uma dose de hipérbole que se subentende estar associada à visão político-partidária. Daí haver necessidade de separar o poder político-partidário na avaliação das obras literárias. Para Aguiar e Silva (2005, p. 403):

“A literatura como sistema semiótico, como instituição, como processo de produção e de leitura de textos constitui parte integrante da fenomenologia histórica das sociedades humanas e das suas culturas.”.

Teme-se que a cultura do endeusamento esteja a trepar as palmeiras do julgamento literário. Por outra, tem havido uma certa violação na fronteira existente entre a literatura enquanto instituição e a manifestação artística.

O que foi aduzido não é para estancar nem atiçar as discussões em torno da poética Netiana. Talvez lançar as sementes da autonomia crítica. Por isso, alerta-nos ainda Aguiar e Silva (2005, p. 17) que “(…) se tornou igualmente óbvio que não existe nenhum denominador comum para todas as produções «literárias», a não ser o uso da linguagem”. Um impute que tem sido marginalizado por itens de ismos. Se por um lado, deparamo-nos com críticas ressentidas, por outro, com críticas emotivas. Ambas perspectivas críticas ignoram a linguagem. Pela postura dos seus discursos e dimensão antropológica que a sua poética atingiu, pode-se filtrar o seu grau de comprometimento com as causas que afligem a natureza humana.

Para alguns estudiosos, Emancipação refere-se à Independência plena, embora acreditemos ser utopia a plenitude, por ser falível na prática. Segundo o Dicionário Língua Portuguesa Prestígio (2012, p. 576), o conceito de Emancipação circunscreve “n.f acto ou efeito de emancipar ou de se emancipar; libertação do jugo de uma autoridade ou de preconceito”. Julga-se que a Emancipação que se pretende aprofundar, o Dicionário a traz sem opacidade, se nos atermos à história angolana. Obstruí-la seria como procurar agulha acompanhado de uma lanterna à luz do dia.

Para o Escritor Macedo (2010, p. 33), a poesia ou poética angolana ramifica-se em «Sentimentalista e Simbolista». Para a apresente comunicação, encaixa-se a sentimentalista por ser característica primária da poética Netiana. A postura revolucionária e integrante do sujeito poético é um dos condimentos do espírito de emancipação da sua produção poética. Na generalidade, com excepções, os escritores anticoloniais, como Agostinho Neto, usam a poética de emancipação intelectual para reportar pseudocolonização e pseudodramas das populações, sem o tom retórico do eufemismo. Assim, espelha no poema “Velho Negro” (2016, p. 41): «vendido e transportado nas galeras/vergastado pelos homens/humilhado até ao pó/ é forçado a obedecer a Deus e aos homens/ perdeu a pátria e a noção de ser/».

Pela historiografia angolana, sabe-se da alienação coerciva a que estiveram submetidos. “Velho Negro” poderá ser qualquer indivíduo que esteja sob o jugo colonial e, até certo ponto, repudia o jugo contínuo. A Emancipação Intelectual na Poética Netiana recusa-se a esquecer-se e a esquecer as causas mais nobres de um povo. A mesma consiste em dois eixos, o de emancipar, pois é, de libertar às almas presas do preconceito cultural, reactivar o sentimento pelas origens, como no poema “Havemos de voltar”(2016, p. 115): «as nossas terras vermelhas do café/ brancas do algodão/verdes dos milharais/ a frescura da mulemba/as nossas tradições/aos ritmos e as fogueiras havemos de voltar/». No poema “A Voz Igual”(2016, p. 117), a emancipação dá-se pelo o Idealismo-Igualitário-Independente: «construindo o amanhã para uma terra nossa/uma pátria nossa independente/construção e reencontro/ Do caos para o reinício do mundo/para o começo progressivo da vida/ e entrar no concerto harmonioso do universal/ digno e livre/ povo independente com voz igual (…)». Era preciso que os poetas, em função do contexto, se libertassem de certas psico-criações, isto é, que assumissem a Vanguarda sem o Romantismo utópico, em que se escreve bonito sem nada expressar. A poética Netiana autoemancipa-se no poema “Adeus a Hora da Largada”(2016, p. 25): «Eu já não espero/sou aquele por quem se espera/sou eu minha mãe/(…)». Resumidamente, a Emancipação Intelectual na poética Netiana dá-se à medida que o sujeito poético usa o intelecto para mudar para melhor a realidade coerciva. Usa-a em prol da liberdade e do bem comum, nega o conformismo confortável. Quando se fala em recusa ao conformismo confortável, é a não-aceitação do estatuto social para o bem maior. O intelectual é aquele que revoluciona e autorevoluciona a concepção formatada de vida. Não terminamos, ficamos por aqui.

Referências bibliográficas

Aguiar e Silva, V. M. (2005). Teoria da Literatura. (8ª edição). Coimbra: Livraria Almedina
Macedo, J. (2010). Como ler e escrever Literatura. Luanda: INIC/Ministério da Cultura
Neto, A. (2016). Obra Poética Completa. Luanda: Fundação Dr. António Agostinho Neto
Plural Editores & Porto Editora (2012). Dicionário de Língua Portuguesa Prestígio. Porto: Autor