O dia desperta e resolvo adicionar mais uma história ao meu livro de memórias. Como de costume, tomo o meu pequeno-almoço, visto uma das minhas batas enormes e as minhas missangas, que combinam na perfeição com o meu cabelo crespo, enfeitam-me os pulsos. Ajusto um par de ténis pretos, os meus tão queridos Converse All Star, aos meus pés, ajeito, com os dedos o cabelo, e sigo viagem, com tantas outras, longas, as vezes desnecessárias, mas apreciando o que realmente me agrada, a sensação de movimento, de explorar a casa onde vivemos, de comer e falar com irmãos que conheço. Isso me encanta!
Nas minhas andanças, o sol ardente não impede de encarar o rastro da chuva sobre a própria natureza, e sobre as falas dos rostos infelizes de quem por má sorte não tem tectos de aço.
― Tectos de aço não existem, o que existe é a cubata de chapa no Chabá, Cazenga, Zango e Bela-Vista; a cubata da tia Rita, mãe de cinco crianças, desempregada que teve a sua velha residência derrubada na promessa do estado de ser-lhe atribuída uma melhor.
― Até agora? Nada!
― Nada que nada nessas águas, nada do nada que sobrou do pouco que com o tempo a tia Rita comprou.
― E assim tudo vai-se.
― Pois é! Como a esperança, a cubata na chuva não resiste.
A chuva empurra para longe os candongueiros e aglomera no lamaçal um mar de gente.
― Mana, hoje não tem candongueiro, nem um azul e branco!
― Tá mal… quadradinho na água não tá passar!
― Coitados, alguns motoristas devem estar atirados no sofá, a combater o calor com uma lata de Cuca. Outros, condicionados a trabalhar em zonas longínquas, com cheiro de asfalto dando voz a lamentos.
Na paragem, um senhor pára a sua viatura repousa os olhos sobre mim e sobre a multidão atrás de mim, e fala calmamente como se quisesse passar despercebido aos ouvidos do mundo que nos rodeia.
Abre discretamente a porta e o carro é agredido pelo enxame de pessoas. Consigo tomar um lugar e deixo-me sentar num dos cinco bancos que constituem o interior da viatura. para quem se sente sufocado, as reclamações não aguardam.
― Não sei, ao certo, o que se passa, se adicionaram mais bancos para aumentar o lucro, ou se nos anos anteriores as minhas pernas eram um pouco mais curtas, mas enfim, sigo assim mesmo.
Por ser daquelas pessoas sossegadas, sigo a viagem inteira calada, se não estiver a sentir no ar o cheiro de terra a invadir-me o nariz, com auricular nos ouvidos e a ouvir a minha lista predilecta, estou a observar, minuciosamente, cada gesto, cada movimento, cada palavra pelo caminho. E é assim que testemunho um episódio que suscita conversa pelo interior da viatura.
― Um polícia de trânsito, a prender três viaturas em simultâneo? Isso é um ultraje!
― Pior que isso é receber quinhentos Kwanzas de cada um deles e seguir na sua moto tipo não aconteceu nada.
― Hum… tentou disfarçar, mas todo mundo viu o cobrador a embrulhar o dinheiro no papel para lhe entregar.
O ambiente sorri com 33 graus de temperatura. Clima quente. Parece que todos respiramos as sobras de oxigénio dos outros, disputando não só um lugar no candongueiro mas também as leves brisas de ar fresco que nos acariciam a face e inspiram a diálogos filosóficos.
― Nunca estive em algum lugar que não fosse o mundo, mas acredito que o inferno do qual tanto se tem medo não deva equiparar-se a cidade de Luanda nesta estação.
― O mundo transformou-se numa versão moderna do inferno, cuja embaixada foi transferida para Angola.
― Falou bonito. Esse calor gera tudo, até poesia. É como os meus avós costumam dizer, há pessoas que enxergam uma beleza que ninguém mais pode ver. Uma poesia oculta!
― Discordo da ideia de que a poesia seja oculta aos olhos, muito pelo contrário, são os donos dos olhos que não se permitem observar a maravilhosa e resplandecente história que os seus olhos lhes têm a contar.
Com ou sem filosofia, na minha testa escorrem rios de suor. Mas deixo-me ser abduzida pelos tons da natureza apreciando um debate intenso que invade os meus ouvidos.
― A chuva é como o amor, em alguns casos destrói e arrasa, em outros, revitaliza e embeleza. Tão imperfeita como qualquer ser, não são só casas e famílias desabrigadas, a terra também está com vestes diferentes, um castanho-vermelho-alaranjando bonito de se sentir como os olhos, com o coração, cor de barro… a relva vestida em tons berrantes de verde, que balançam ao som do vento a dança da vida. Ah, as flores, uma variedade delas, grandes, médias e pequenas, amarelas, rochas e vermelhas…um poema visual! Aquelas cores vibrantes cantam para os olhos que lhes cruzam os versos de esperança… A esperança que reside na infância.
― Gosto quando falam de esperança e de infância juntas, para lembrar as diferenças entre essa e outras épocas, sobre os ganhos que se alcançaram com o fim dá guerra, sobre abandono, procura, desilusão… A esperança das coisas que não aconteceram e criaram analfabetos, as missões, às quais muitos foram enviados, ainda miúdos, a fome, a crueldade dos homens, a morte.
― Aprendemos a não ser homens, a não viver, somente a sobreviver. E nem mais a morte nos é estranha pois nos esquivamos dela. De que serve falar da chuva de insensibilidade de outra época?
― É preciso falar da época em que os generais se serviam do poder e do que faziam daqueles que menos tinham cavalos de guerra na frente das trincheiras; das noites sem dormir, do peso das botas, dos hematomas na pele por se estar demasiado tempo exposto ao frio e em pé, tanto que após quarenta horas, calçados e fardados, até as meias pareciam pesar. Falo dessa altura, porque foi uma fase de lições e aprendizagens. Além do sofrimento, aprendi a utilidade dalgumas raízes, como da bananeira, que era usada para fazer fuba, da gosma castanha que encontrava-se em sanitas sujas das casas abandonadas, das quais usava-se como sal. Falo disso, porque é preciso que os meninos apreciem a chuva de água, porque a de bala ninguém merece! Não desejo isso para ninguém. Guerra nunca mais! Que tudo se resolva sempre com diálogo. Juro, a guerra me dói, até hoje, na carne e na alma!
Com os olhos brilhantes, feito pérolas cansadas pela idade e pela vida, abraço a voz trémula, que respira lições de vida, e me emociono com os soluços entre os intervalos para respirar e conter-se. As histórias sobre o distanciamento com a família, da evacuação da cidade natal para Luanda, das perdas, da vida e da morte como uma única saída, da insignificância da existência humana comparada à natureza e muito mais, me cravam no peito.
Finda a viagem. Aceno num sorriso um aceno em modo de despedida, ou de agradecimento, sabendo que compartilharei com o mundo uma rica memória. Não conseguiria, mesmo que quisesse, captar só de ouvidos uma história tão cheia de vida e guardá-la só para mim.