Resenha aos gloriosos

Quando o mano Miguelito das casucutas me contactou, por via telefónica ou radiofónica, já não sei, com a língua afiada sobre quem ficara com as fezes do último papado nas mãos e dos diavulos que dava, logo nas primeiras lamadas do império, decidi escrever-lhe — ao novo papista, uma missiva, onde o aconselhei sobre o barco que já rumava ao ventre do mar da Kianda. Porém, nunca percebi a resposta do seu silêncio…

Outrossim, estava o seu silêncio escrito em miocas de insones linhas, lá no palácio das kisaqueiras. Naquele dia, dez de Dezembro do ano “vermelho” — da fome e covid-19, contavam-se quarenta e cinco glórias de afoita e sacrossanta mercearia. Já se imagina que, ainda que com cérebro de ave e matemática dos mortos, são areias da praia do Mussulo os ovos que do galinheiro dourado delapidaram à saqueagem. Foi aquela resposta dele silenciosa que me açulou a coragem. Pus-me no vai-e-vem do vento à calçada de Paiva de Andrade, e zurzia, ao ar de um cão analfabeto, os nomes blasfémicos de Angola. “Eles não sabem de onde sai a comida que chega às suas mesas”, vomitei os nervos da multidão à escareta do glorioso — rosto azedo, língua recatada. O beberrão arrogante, em aberto arreganho do linguajar, à sombra do abacateiro, esfiou um sorriso fissurado nos lábios e usou os pára-brisas para desenxovalhar o meu personagem pictórico. O mano Miguelito só riu. Disse “provocaste o leão”.

A cantiga: “O crivo do povo era homem do campo. À tonga, ia aos alegres cantos gambuzinos. A fome que comíamos, dizia ele sem papas na língua, era a chacha do seu suor. Que às madrugadas, a sua enxada assentava-lhe apaixonada nos dorsos, antejogada à terra, e sorria-lhe jactâncias de ser o mimoso e glorioso alimentador do povo. Cantiga que nem aos pássaros do Mayombe embala. Uma gente dessa, só podia ser medieval. É uma estirpe então de maquinistas de gala. Não podia apenas ser o branco pombeiro, que entrevados anos luzes, almofadou a miséria dos nossos mortos-vivos e fala, hoje, de uma suposta lei de regresso. “O galinheiro de ouro ainda me pertence. Foste posto a lubrificar as câmeras do canhangulo, e não para fuzilar à tona o artífice da paz. São as coboiadas!”

No quilunzar da tarde — de sol tórrido, eu, esbaforido, farto daquela notícia ruim como estava, acorri ao fim do mundo. Ouvi, dos rasgões de almas, o vozear de toda juventude angolana. “não foi isso, … não foi aquilo que sonhamos”. Eu vi a chama ardendo nos corações dos personagens que não vivem, mas existem. E clamam por uma justiça pública. Negam, com todas as forças, o regresso do trono. E juram, de pés juntos, içar uma bandeira da sua cor — a cor do grito da zungueira, do lotador às paragens, do roboteiro, do engraxador de sapatos às estradas, do poeta e do escritor que não precisam de glórias, pois estas, são para os gloriosos. Porém, uma kampa e uma terra para sepultar com pão e água seus corpos embrutecidos.

…porém, no fim dos somatórios, acabei de escrever um aviso ao novo inclino do Cazenga, nas mesmas linhas tortinhas, ou seja, miocas.

Aquela ligação, auscultação ou sei lá quê “coiso” do mano Miguelito, surripiou-me os gostos todos de viver. Matei-me de gargalhadas fora do mundo. Depois, já aterrado ao Kinaxixe, depois à Marginal, lá, onde não sei se havia mangais, o vento dos dias pertubava-me, porque a agonia e êxtase suculentavam o Sambizanga pelos gritos dos apitos, que marcavam fins à natureza dos gabirus, entre fôlegos culpados e inocentes. Agora, o mano Miguelito, dois ou três anos depois da primeira ligação da língua-afiada, falou na rádio do cadastro e personalidade do novo “inclino” do Cazenga. Desta vez, fui eu a rir dos abusos. E mandei-lhe dizer: “ Mandão, haja bom senso e respeito pelos direitos humanos! A cadeira não é de ferro. Se queres mandar, manda só bem. Come lá o dinheiro do PIIM, mas não a carne das pessoas no atear do fogo.” Acho que ficou o aviso?