Tempo, lugares e vivências. A poesia como fotografia das circunstâncias e das expressões afectivas do eu.A estrada da secura de Luís Kandjimbo

A poesia é feita de marcas da subjectividade de um eu-lírico, da interioridade do sujeito. Sua manifestação na forma resulta de vários contactos estabelecidos e ocorridos entre o ser e a sua natureza bem como a natureza de outrem em relação com o meio social e os tempos. A expressão da poesia lírica revela uma a várias vivências, traduzidas por palavras carregadas de relações entre os factos inspiradores da poesia, o sentimento que as libertou e as várias razões da sua formalização. Na poesia, encontram-se traçadas várias linhas de sentido sobre tempo, lugares, vivências como que harmonizados de forma que se expressam como fotografias das circuntâncias e das expressões afectivas do eu, expressas por um eu-lírico cuja abrangência significativa envolve seres e coisas vividas e sofridas.

Assim, manifestam-se muitas das obras poéticas que lemos e dizemos. Assim, afigura-se, na sua riqueza significativa, a obra em cujas páginas são traduzidos os sentidos que, no espaço da palavra, descobrimos. Nestes termos, anunciamos a obra A Estrada Da Secura como uma manifestação poética em cujas partes se podem absorver algumas fotografias dos tempos, dos lugares e das vivências do indivíduo no tempo e no espaço.

A Estrada Da Secura é uma obra poética composta por 40 poemas de diversas medidas e um texto que se afigura como um conto feito essencialmente de diálogo. A Estrada Da Segura é uma publicação da União dos Escritores Angolanos, da autoria do escritor Luís Kandjimbo. É uma obra poética sugestiva que nos conduz a uma viagem de deleite, reflexão e introspecção. Convida-nos a rever uma cadeia de ocorrências evocadas pelo simbolismo da poesia lírica. Lemos tempos já idos pela dinâmica sequencial do próprio tempo, lemos tempos que permanecem vivos nas memórias dos homens e na transcrição da poesia que deriva delas, lemos as palavras do poeta que são a denúncia dos actos de desestabilização do homem:

 um projétil explode na vitrina

viveres acordam apetites

no dia do holocausto fratricida

 Criaturas enfrentam perigo da aurora

Apontam no coração pavor da penúria

Da cidade onde as balas emudecem

Vozes ensanguentas pela exígua carência

E as milícias sem piedade

iniciam saque das coisas cobiçadas

a cidade nua e destroçada

acorda na família esfomeada

(p. 26)

Luís Kandjimbo é escritor angolano que responde pelo nome de Luís Domingos Francisco, nascido em Benguela nos anos 1960. Luís Kandjimbo é uma importante personalidade no universo dos estudos literários em Angola. Detentor de um percurso de vida demarcado pela sua importante contribuição no campo da investigação científica. Estamos diante de uma personalidade cuja contribuição nos levaria a uma viagem à sua biografia que convidamos o leitor a visitar para melhor conhecer esta personalidade das letras angolanas.

Luís Kandjimbo é ensaísta e poeta. É Membro da União dos Escritores Angolanos, instituição angolana sediada em Luanda cujo trabalho consiste também na divulgação de autores e obras da literatura angolana.

Luís Kandjimbo tem várias obras publicadas. Dentre elas, Apuros de vigília, 1987, Apologia de kalitanji, 1998. A obra A Estrada Da Secura foi publicada em 1995 e mereceu a menção honrosa do Prémio Sonangol de Literatura. Luís Kandjimbo tem vários artigos publicados no jornal de Angola. Foi Membro do colectivo de trabalhos Ohandanji e tem uma estrada de publicações e estudos importantes sobre literaturas e estudos africanos.

A nossa proposta de leitura pretende ser uma introdução à leitura da poesia de Luís Kandjimbo. Pretende-se uma abordagem de inspiração estruturalista no seu âmbito analítico, embora pretenda dialogar com outras formas de leitura. Nossa primeira pretensão é ler antes de tudo a poesia. Porque a boa poesia deve ser lida.

Evocamos aqui o termo fotografia para nos servirmos do seu significado que está relacionado à concepção segundo a qual “a fotografia é um mecanismo que permite arquivar um momento” nos dizeres de Gabriella Porto, e que está relacionada ao facto de que além de se constituir uma imitação, ela se consubstancia como “uma interpretação da realidade”. Fotografar é registar, enfatizar e marcar na memória. A ênfase que se dá a um objecto referido é uma exultação ou exortação.

A Estrada da Secura de Luís Kandjimbo é uma obra poética que dá ênfase e configura-se como o registo dos tempos e circunstâncias que marcaram a vida política e social de Angola. Estamos a referir os tempos de conflitos vividos pelos angolanos que o autor na sua subjectividade registou nas páginas da sua poética.

 DECIFRO O TERÇO

Decifro o terço da guerra

nos caminhos dos rostos imberbes

e sóbrios relatam suas marcas

Passaram todos

sem os beneficiários da infâmia

verterão pela boca suas vísceras.

Oferecem o espetáculo

desta forma de reter a fraqueza

a sede e a miséria

no recanto mais perene das nossas memórias

Em termos significativos, A Estrada da Secura de Luís Kandjimbo é uma obra cujo valor estético pode ser medido a partir da concepção do título, passando pelos tecidos lexicais de que é feita, pela sua estrutura formal e pelas ideias objectivadas internamente bem como pelo seu valor simbólico, assim como pela abrangência e representatividade que poderá desempenhar nos dias de hoje, uma obra enigmática para se ler com diferentes olhares e reflectir a literatura como o lugar de memórias e reivindicações.

O título A Estrada da Secura remete para um simbolismo referente aos caminhos de carência e sede, de ausência. Decadência e insuficiências conforme se pode ler na página 23 da obra: «da distância transbordam fracturas sedentárias». E «o mercado encena máscara da escassez» na página 34.

Luís Kandjimbo encarna na voz um sujeito poético que acredita na força purificadora da palavra e especificamente da poesia: «escrevo cursivos sobre areia/ expurgando canseiras deixadas/ da servidão e da dor» (p. 33).

A Estrada da Secura é uma obra poética com poemas na sua maioria de duas a três estrofes, estruturas estróficas regulares e irregulares. Na sua estrutura formal, a metáfora é sutilmente explorada, assim como a imagem «cheiros trespassam sonhos/ quando encontro lugares e pessoas/trespassa-me uma insondável nostalgia da idade» e a alusão, sendo de explorar, pela leitura, muitas outras expressões cujo alcance estilístico é notável.

A Estrada Da Secura é simbólica. Palavras frequentes como dor, morte, fogo, água, sol, luz, marcam na poesia, pela sua frequência, imagens que nos remetem a muitos dos referentes simbólicos de alusão aos tempos de guerra, fome e obscuridade vividos pelos homens e mulheres de Angola.

A poesia de Luís Kandjimbo é de uma densidade poética notável. De uma riqueza significativa. Mesmo quando trata sobre guerra e fome, é subtil e vai além alastrar-se por significações abundantes: «A terra foi triturada/ por uma enorme fila de formigas vermelhas/ ao fim de um repasto para ervas ressequidas/ numa terra tornada sem chuva».

 A Estrada da Secura é uma obra cuja magnitude reside também na sua qualidade atemporal, embora tenha visíveis marcas da situação da sua existência, do contexto de sua produção. E só pode ser medida pela leitura cuidadosa de seus versos:

A estrada persegue

Securas de chuvas sucessivas

Na cidade viciada pela penumbra

Da penúria disseminada pelas infames etiquetas

Automóveis e camiões

Transportam cereais da abominável indolência (p.40)

E por isso se diz também ser esta poética uma marca de valor da poesia. É actual para se ler com os olhos destes tempos. É testemunha dos tempos de escuridão e secura, configurando-se como um documento importante sobre as marcas das circunstâncias e das vivências registadas na memória do poeta para se ler em todos os tempos.

Enquanto permanece intemporal e pela forma como ela própria concebe a poesia, A Estrada da Secura de Luís Kandjimbo pode ser inscrita na chamada poesia contemporânea angolana pela sua actualidade e temporalidade.

E é este o argumento de Luís Kandjimbo e a sua concepção actual e renovadora sobre o que é poesia:

Não é exacto que a poesia seja infusão de verbos

Transumantes. Deixo as palavras no avesso da

 abundância e regresso às tormentas da água, do sol

e do pó. E ao fascínio das mulheres. Atinjo as dunas

da seca domiciliar. Assomo as fragrâncias moribundas

do dia, na efervescência do ocaso. (p.9)