Tradução Literária: Tradução Possível

A grande questão da Tradução Literária sempre residirá na fidelidade do texto de chegada em relação ao texto de partida. Falar sobre possibilidades e impossibilidades na tradução literária já foi motivo para monografias, dissertações de mestrado e teses de doutoramento. A tradução Literária entendida como reprodução duma literatura por via duma outra língua, do nosso ponto de vista, nunca será perfeita, por força da natureza dinâmica do texto literário. No entanto, é viável falar-se duma «tradução possível»: aquela em que o grau de manipulação permite a um determinado leitor ler, com o menor grau de deturpação, uma obra escrita inicialmente numa língua que não seja a sua.

A polémica em torno do papel do tradutor e a atitude que este deve manter diante da obra original remontam desde os primórdios da teoria da tradução. As opiniões são diversas e antagónicas, existindo mesmo quem se atire contra a tradução de obras e proíba a criatividade no acto de traduzir. As recomendações, mais violentas e radicais sobre esta matéria, vêm do filósofo alemão Schopenhauer (2005, p. 61):

(…) os tradutores que pretendem, ao mesmo tempo, corrigir e reelaborar seus autores, o que sempre me parece uma impertinência, escreva seus próprios livros dignos de serem traduzidos e deixe outras obras como elas são.

A tradução literária, por força da natureza do texto literário, implica sempre uma espécie de reelaboração ou reinvenção para uma melhor adaptação à língua de chegada. Schopenhauer (ibidem, p. 151), mantendo a sua postura empírico-racionalista, prossegue:

Por isso, toda tradução é uma obra morta, e seu estilo é forçado, rígido, sem naturalidade (…). Uma biblioteca de traduções é como uma galeria de arte que só expõe cópias (…). E, quanto às traduções dos escritores da Antiguidade, elas são um sucedâneo de suas obras assim como o café de chicória é um sucedâneo do verdadeiro café.

Sobre essa posição corrosiva defendida por Schopenhauer (ibidem), adverte-nos Süssekind (2005, p.7) no preâmbulo de «A arte de escrever», que se deve uma valorização do estudo das línguas, especialmente das línguas clássicas – o grego, o latim e o sânscrito – que o autor considera muito superiores a todas as línguas modernas, com excepção do alemão, a única língua capaz de concorrer com as clássicas – enquanto as restantes línguas europeias não passariam de simples dialectos.

É importante referir que, com esta crítica violenta contra os tradutores, Schopenhauer (2005) deixa um incentivo aos potenciais leitores que usufruem das obras traduzidas. Já que «todas as traduções são necessariamente imperfeitas», o melhor seria aprender o maior número de línguas possíveis com vista a ampliar o nosso acervo de conceitos e, assim, não perder a possibilidade de conhecer a obra na plenitude. O filósofo alemão, nas palavras de Süssekind (2005, p. 7), entende que cada língua possui «palavras específicas que expressam determinados conceitos com muito mais precisão do que todas as outras línguas».

Não se pode negar à Tradução Literária o seu lugar de existência, bem como a sua importância para o desenvolvimento da Instituição Literatura Universal, quando obras como «O Retrato de Dorian Gray», de Oscar Wilde, «Sagrada Esperança», de Agostinho Neto (1979), «Coração Telúrico», de Lopito Feijóo (2014), «Os Sóis das Independências», de Ahmadou Kourouma (2009), entre outras, são lidas ou estudadas em vários países e em diferentes línguas. Além disso, não nos podemos esquecer que o Movimento Renascentista europeu (séc. XV e XVI) teve de, necessariamente, recorrer à tradução de textos clássicos para alcançar o propósito que esteve na base da sua génese: redescoberta e revalorização dos modelos culturais da antiguidade greco-romana. Dito isto, acreditamos como Lefevere (2007, p.24) que a tradução literária seja indubitavelmente «o principal meio pelo qual uma literatura» de outro sistema linguístico «pode influenciar a outra».

A tradução literária é um facto concreto, «um processo mágico que cria no mais comum dos mortais a ilusão de estar a ler uma obra literária escrita num idioma que não é o seu, como se do seu se tratasse» (Leal, 1994, p.21). Ela implica sempre uma certa manipulação e não está isenta de adulterações ou de alguns equívocos. Além disso, como alerta Lima (2010, p.64), «o tradutor é, antes de mais, um leitor e nessa qualidade vê aquilo que quer ou pode ver num texto literário». Assim sendo, pode-se dizer que a tradução literária impõe ao tradutor um duplo compromisso – o de leitor e o de co-autor – consubstanciado numa tensão permanente de exclusão e inclusão, pese embora Barthes (2004, p.6) diga que «o nascimento do leitor tem de se pagar com a morte do autor». A posição de Barthes (2004) faz sentido num outro contexto, pois, que no processo de tradução literária, não se tem como escapar dessa dicotomia do leitor versus (co) autor. Talvez seja apenas, como diria Foucault (2001, p.268), tratar-se da «abertura dum espaço em que o sujeito que escreve não para de desaparecer».

Hoje, diversos são os meios electrónicos à disposição dos tradutores; nenhum deles é suficiente para dar a resposta mais adequada à tradução literária. Os tradutores automáticos como Google Translator, Babelfish e outros afins, bem como as CAT (Computer-Aided Translation) Tools[1] como Déjà Vu, MemoQ, Trados, Wordfast — também softwares que podem ser aproveitados no processo de tradução.

Tais softwares podem facilitar o processo, mas a garantia do sucesso depende essencialmente do nível cultural do tradutor. Não há inteligência artificial que faça uma tradução literária aceitável. A boa tradução literária implica sempre uma profunda compreensão dos idiomas envolvidos bem como o conhecimento histórico-cultural do contexto sociopolítico em que a obra de partida se insere ou estará inserida — factos que estão além das capacidades da inteligência artificial.

Mais do que uma relação entre línguas de dois sistemas diferentes, a tradução é, na verdade, uma relação entre culturas, não havendo, por isso, engenharia electrónica que lhe dê melhor resposta.

Este tipo de tradução — a literária — requer exclusivamente habilidades humanas, na medida em que traduzir palavra por palavra ou sintagmas, tal como acontece geralmente com os softwares de auxílio à tradução, comprometeria, de todo, o resultado esperado.

[1]Ao contrário dos tradutores automáticos, esses programas não traduzem nada sozinhos. As traduções são feitas por tradutores que utilizam esses softwares como sua plataforma de tradução.

Bibliografia

• Foucault, M. (2001). O que é um autor? In M. B. da Motta (Org.). Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. (pp. 264-298). Rio de Janeiro: Forense Universitária.
Kourouma, A. (2009). Os Sóis das Independências. (1ª ed.). (S. Travassos. Trad). Angola: INALD.
• Leal, L. (1994). O Labirinto do texto: Da teoria da tradução à Literatura. Lisboa: Universitária Editora LDA.
• Lefevere, A. (2007). Tradução, reescrita e manipulação da fama literária. (C. M. Seligmann). Bauru: EDUSC
• Lima, C. (2010). Manual de Teoria da Tradução. Lisboa: Edições Colibri.
• Feijó, L. (2015). Tellurian Heart. Editora Essencial.
• Neto, A. (1979). Sagrada Esperança – Poemas. Lisboa: União de Escritores Angolanos, Sá da Costa Editores.
• Schopenhauer, A. (2005). A arte de escrever. (P. Süssekind, Org. & Trad.). Porto Alegre: L&PM. Disponível em www. lpm.com.br.
• Süssekind, P. (2005). Sobre a literatura em seus vários aspectos. In A. Schopenhauer (2005). A arte de escrever. (P. Süssekind, Org. & Trad.). Porto Alegre: L&PM. Disponível em www. lpm.com.br.
• Wild, O. (2000). O Retrato de Dorion Gray. (Maria Ruivo, Trad.). Linda-a-velha-Portugal: Barbara Palla & Carmo (eds).