Twana Teatro: O romance de um grupo do Sambizanga que sonha com o mundo

Fundado há 14 anos por um grupo de jovens do Sambizanga, Twana Teatro teve a sua primeira aparição pública no dia 25 de Dezembro de 2002, com a exibição da obra cómica entitulada “A união faz a força”. A Palavra&Arte teve uma conversa com os responsáveis do grupo, Victor Sampaio e José Martins, que falaram do trajecto construído desde 2002 e que já prepara para uma projecção internacional com a peça “Roque – O romance de um mercado”.

Palavra&Arte: Comecem por falar um pouco sobre o Twana Teatro. Como surgiu?

Victor Sampaio: A ideia era criarmos um grupo carnavalesco. Eu já actuava num grupo da igreja e tinha dois amigos que dançavam para o Cabocomeu. Só que a ideia de grupo carnavalesco não nos parecia bem, ou seja, treinar o ano todo para só apresentar uma vez por ano. Queríamos algo que nos permitisse alguma regularidade. E optamos pelo teatro.

 Nesse processo do surgimento até agora, conseguiram um grande repertório de peças e espetáculos?

Victor Sampaio (VS):  Já, sim. Bem, é um leque grande de espéctaculos e, naturalmente, há alguns que se destacam como é o caso da peça “A união faz a força”, que é uma estreia do grupo, ainda há “Luanda – A cidade do diabo” que nos permitiu fazer uma digressão por Benguela, Kwanza Sul, Caxito. A peça é uma homenagem à cidade de Luanda com todos os seus aspectos sociais, sobretudo negativos, que se vivia na altura (2003). Já actuamos em seis províncias.

José Martins (JM): Esta peça (Luanda – A cidade do diabo) é uma crítica social àquelas vivências, às confusões de Luanda, àqueles males, àquelas reclamações do citadino, algumas que até agora continuam. Esta mesma peça ainda evoluiu, deu lugar a “ Luanda – A casa dos Loucos” que nos  rendeu um prémio na categoria “Revelação” do extinto “Prémio Cidade de Luanda”, edição 2010. São até agora muitos espetáculo, e, no meio, existem outras peças que podem não ter a mesma dimensão, mas marcaram-nos imenso.

Twana Teatro em exibição

 Que tipo de mensagens é que vocês pensam que as vossas peças devem ou estão a passar?

JM:  A nível de mensagens, os nossos espéctulos têm de tudo um pouco: desde mensagens de resgate dos valores morais, questões sociais, como a violência, fuga à paternidade, abortos, valores religiosos, etc., além de abordar temas sempre actuais, quer sejam de Luanda ou de nível nacional. Temos peças com temática histórica que funcionam um bocadinho como os romances históricos, ou seja, tocam as histórias de Angola, da cidade de Luanda, bem como tocam um bocadinho na própria história do mundo. Estamos a falar, por exemplo, da peça “Roque – O romance de um mercado”, onde falamos desde a fundação da cidade de Luanda em paralelo com a evolução da mesma e com as questões sociais encontradas bem claras.

VS: Tudo isso com um bom senso crítico a par da própria criatividade e do processo de evolução dos tempos e do mundo.

 Muito além desse tipo de mensagem, pode ser encontrada nas vossas peças alguma consciencialização político-social?

VS: A componente social é mais forte, mas acaba por ser um bocado política. Afinal Luanda, o país, é governado por dirigentes políticos e são esses que encaminham a sociedade. É preciso a máxima atenção em perceber até onde estamos a ser dirigidos, se bem ou não. Na peça “Luanda – A cidade do diabo”, tem por exemplo essas duas componentes, porque, às vezes, nós, os citadinos, gostamos de apontar o dedo sem olhar para que tipo de contribuição damos para ajudar esse mesmo governador. Temos que perceber qual é a nossa parte nos problemas sociais.

 Nota-se frequentemente um grande número de apresentações de comédias e sátira e tão poucas de outros géneros. Em quais gêneros vocês buscam passar essas mensagens?

VS: Exploramos de tudo um pouco, principalmente as comédias e as tragicomédias, para assuntos que requerem mais seriedade, mas com alguma descontracção. Para não parecer pesado demais, e deixar o público um pouco assustado. A comédia e a tragicomédia funcionam como uma terapia usada para uma crítica social e também para uma boa recepção. O público vai ao teatro é para relaxar, e para apreender, por isso temos também a componente pedagógica.

JM: Na verdade, tem de haver flexibilidade. Embora tenhamos peças que refletem outros gêneros. A peça “Um Teste para Vida” (2006) que é um drama que aborda questões do aborto é um exemplo de como podemos ser versáteis.

 Fora da zona de conforto, qual é o gênero que optariam fazer para passar as mesmas mensagens, mesmo receando esse ambiente pesado?

VS: Seria a tragédia.

 Sem ser tragicomédia?

JM: Sim, só mesmo. Assustar de forma artística e comovente.

Twana Teatro em momentos de ensaios

A produção de texto dramático ainda é escassa na nossa literatura. São poucos os escritores que escrevem este género. Como é a vossa relação com os textos literários?

JM:  É boa, tanto que nós estamos sempre na esteira das poucas obras que existem. Aliás, durante algum tempo, em Angola, fugia-se das adaptações, buscar obras já escritas tipicamente no drama para a própria criação artística. Os directores, os encenadores eram os dramaturgos. Durante muito tempo foi assim a nível geral e não fomos a excepção. No caso, o Victor escrevia mesmo as peças do grupo, mas a relação é boa com a literatura porque há abertura. Se aparece um texto dramático que é bom e nos dê alguma ideia, trabalhamos. Tanto que estamos a fazê-lo na obra “A visita” de Fragata de Morais, que é um texto dramático. Outra coisa é trabalhar com texto dramático e outra diferente é com adaptações: o nível de responsabilidade, as exigências não serão os mesmos. Muitas vezes, o autor escreve o seu texto baseando numa realidade e tu queres trabalhar esse texto para outra realidade.

VS: Além dos que já trabalhámos: Clandestinos no Paraíso (2016), adaptada da obra de Luís Fernando, Roque – Romance de um Mercado (2008) adaptada da obra de Hendrik Vaal Neto, temos agora este do Fragata de Morais. Pessoas a que estendemos os nossos agradecimentos.

 Uma questão muito falada nas artes e outras áreas é a reconfiguração do saber oral ou tradiciona. Qual é a vossa posição em buscar esses saberes e trabalhar, adaptar numa apresentação?

JM: Nas nossas peças, e é já uma marca para nós, há a inclusão de bordões que têm a ver com o saber tradicional e, em alguns casos, músicas. Recorremos a esse saber muitas vezes, com a inclusão de alguns provérbios e contos populares.

VS: Diversificamos também nas regiões. Buscamos contos ou provérbios nas regiões kimbundu ou umbundu, tentamos conciliar de tudo um bocado para resgatar esses saberes.

 Vocês têm alguma peça que é específica ou totalmente baseada em algum conto tradicional?

JM: A peça “A União Faz a Força” de 25 de dezembro de 2002, que é a história do elefante e da união das formigas, é a nossa primeira peça. Só que é bocado para preservar esse saber tradicional. Em muitos casos, o campo de pesquisa dos actores é muito limitado e temos ainda o senão dos actores não terem domínio das línguas nacionais. Isso também dificulta na inclusão de certos elementos da própria tradução, mas temos isso do princípio até agora.

 Deixando um pouco as mensagens e adaptações. É, para vocês, muito difícil fazer teatro em Angola?

VS: Muito. Em todos aspectos, principalmente na questão financeira; algumas vezes para montarmos algum espectáculo a indumentária é da responsabilidade da direção artística do grupo. Há casos em que o actor vem já com indumentária de casa. Há também a questão da cenografia.

JM: A dificuldade está justamente ali. Do ponto de vista prático, deviam ser responsabilidade do grupo, a cenografia e o figurino.

Como avaliam os espaços teatrais nos quesitos estrutural e ideal e se é adequada às necessidades da arte?

JM: Paupérrimas! Pouquíssimas salas têm a qualidade que se deseja. Não possuem, por exemplo, luzes que os artistas pretendem e não têm qualidade para o som. Temos, muitas vezes, que nos ajustar, usar a máxima de “quem não tem cão caça como gato”.

VS: Muitas vezes, dividimos essas poucas salas com mais alguma coisa: ou é uma festa, ou funerais, tudo na mesma sala. Luanda só tem agora duas salas que, apesar das dificuldades, se sobrepõe as outras: a Liga Africana, em que os grupos se vão dividindo, e o Auditório Nginga Mbandi, responsabilidade do grupo Horizonte Nginga Mbandi, onde também há alternância. A maioria dos grupos opta mesmo pela Liga Africana onde há uma gestão mais aberta. Há ainda aquelas adaptáveis, às vezes, o trabalho é numa igreja, salões de festa…

 E há algum apoio institucional para a realização dos vossos espectáculos?

JM: Temos tido algumas ajudas. Trabalhamos em parceria com a Direcção Nacional para Acção Cultural, que nos tem ajudado muito quer a nível de espetáculos ou a conseguir determinados objectivos. E há também algumas instituições que, quando se lhes bate à porta, conseguem atender. Tirando isso, não me lembro de quase nada.

VS: E penso que nós, os artistas, temos de ter aquele espírito de fazer sacrifícios. Teatro em Angola requer muito isso, só assim, hoje, algumas coisas vão melhorando a nível de produção.

 Já se pode falar em profissionalizar o teatro em Angola ou ainda estamos no fazer por amor?

VS: Já se pode falar e é um processo. Hoje já há uma escola média e uma superior de teatro. Se o executivo já pensa em algo como estas escolas é porque pode se ver uma maneira de melhorar o mercado e ver uma forma de rentabilizar os fazedores. Verifica-se que, antes, para fazer um curso de teatro, dependíamos do Ministério da Cultura que mandava grupos estrangeiros para dar espectáculos e seminários. Neste momento, a ideia é que daqui para frente consigamos fazer uma licenciatura de teatro e fazer dela uma profissão como se espera a todos os níveis. É uma coisa de cada vez

 Há retorno financeiro?

VS: Ainda não. Não se conta muito ainda; o Horizonte Nginga Mbandi é um grupo que tem seu auditório, e penso que já consegue ter a vida um pouco mais facilitada em comparação aos outros grupos, dado a regularização dos seus espéctulos que os possibilita, talvez, ter mensalidade que, mesmo não sendo satisfatória para o grupo em si, chega para as despesas básicas do grupo e suprir algumas lacunas. Penso que a rentabilidade passa maneira que alguns grupos fazem espectáculos com regularidade, quantos mais exibires, mais rentabilizas. E está ali o grande “calcanhar de Aquiles” nas exibições, porque as salas são difíceis e os grupos são muitos. Imagina, se tu fazes espectáculo na Liga africana. Agora para voltares, passas três a cinco meses depois.

JM: Não se pode falar de rentabilidade nestas condições.

 Dentro do Twana, como fazem para lidar com isso?

JM: Como nós fazemos? Primeiro consciencializar todo membro e pô-lo a par da situação. Consciente dessa realidade, aliás, todos sabem da situação que o teatro vive, não há muito o que fazer. Fazemos os nossos espétaculos a nosso ritmo e em função disso vamos tirar alguma coisa que não serve ainda para cobrir todas as despesas, mas para, pelo menos, cobrir 50 a 60 por cento das despesas das necessidades do grupo. Agora, para salário a nível do pessoal, ainda não temos. Tentámos fazer algumas parcerias e juntar ideias para poder conseguir um espaço que nos dê regularidade.

Como grupo inserido nessa situação, que tipos de políticas públicas acham que devem ser impostas para o desenvolvimento do teatro no pais?

JM: Penso que a saída passa pela criação de mais salas e facilitar o acesso dos grupos às mesmas salas. Temos, por exemplo, a Liga Africana que não é barato ocupar para espectáculos. São custos muito altos que tens de adicionar aos custos de produção do próprio espectáculo. Se pudessem aumentariam o número de salas ou criação de espaços alternativos – podia ser a partir das escolas; infelizmente, poucas escolas têm anfiteatro. Para aquelas escolas com anfiteatro, se, por um despacho ministerial, facilitar os grupos de teatro usarem aqueles espaços, de certeza que aumentaria o número de salas e a regularidade dos grupos a nível de exibições. Do nosso lado, vamos continuar a trabalhar, criar alternativas.

VS: Só para ressaltar algo. As responsabilidades de espaços teatrais não é só para o Ministério da Cultura, os governos provinciais e as administrações municipais têm de se dedicar na criação destes e também de outros espaços de lazer. Essas entidades têm também de criar essas políticas, porque, se depender de um único órgão, não funciona.

 Há um intercâmbio ou colaboração forte entre os fazedores, com propósitos de estabelecer bases para o desenvolvimento do teatro?

JM: Há. Tanto que há espaços de debates para se discutir essas e outras questões. E vai se criando ideias, juntando-as para remar por um lado positivo: o que é que nós queremos? Mais salas, se não temos agora, podemos criar uma alternativa, não temos palcos, podemos nos juntar para criar um.

VS: E há ainda a Associação Angolana de Teatro. Estamos a caminhar, embora a passos lentos.

 Quanto aos planos de internacionalizar o grupo, como está?

JM: O nosso plano começou ainda em julho com o Festival de Teatro do Cazenga, com a peça “Roque – o romance de um mercado”. Despois vamos para o Festival de Teatro de Mindelo em Cabo Verde, em Setembro. É um percurso que nos vai levar até ao Festival Internacional de Teatro do Rio de Janeiro.

 Porquê a peça “Roque – o romance de um mercado” e como vos chegou o convite?

VS: Porque representa a nossa realidade com alguma actualidade, isto é, pelas características que a peça tem, o caractere histórico da peça. Há pessoas que nunca conheceram o mercado, nem sabem da dimensão do Roque Santeiro a nível nacional e africano. O convite chegou-nos por causa mesmo desta peça. Há alguém que viu a peça e é próximo dos organizadores do festival em Cabo Verde. Viu o espectáculo no Centro Cultural Camões. Durante o espaço de debates “Há Teatro no Camões”, pediu-nos para ver por completo na Liga Africana. Gostou. Daí o convite.

 Já para fechar, quais são as aspirações futuras do grupo?

VS: A criação de um espaço próprio, com as capacidade para escritórios, salas de formação e salas de espectáculos. Que seja adaptável, aconchegante e que seja um espaço de lazer para que as pessoas se sintam confortáveis. Porque nós estamos a pensar no teatro como algo já profissional, que ajude na rentabilidade. As nossas principais aspirações passam por beber de outras experiências e construir também a nossa própria marca. Estamos também com vista nos festivais internacionais.

 Victor Sampaio e José Martins, foi uma honra terem tecido algumas palavras para a Revista Palavra & Arte, pelo que vos agradece a disponibilidade e deseja ao grupo Twana Teatro grandes espectáculos e as maiores actuações.

VS e JM: O Twana Teatro é quem agradece pelo convite.