“Viver e morrer em Angola” (2016), de Paulino Soma

Assim como uma sentença para alguns e talvez uma promessa para outros, “Viver e Morrer em Angola” é o título de um romance, um romance distinto. Ele se notabiliza dos demais devido ao contexto espacial e temporal em que se circunscreve; ao retrato muito próximo da vida real, na medida em que a utopia e a distopia digladiam-se de igual para igual; ao estatuto social das personagens; à harmonia entre o linguajar das mesmas e as figuras de estilo às quais o narrador recorreu; assim como devido à (re)criação de expressões doces e fáceis de se ouvir e de se falar também, que é visível tanto nas descrições como nos diálogos.

“Viver e Morrer em Angola”, dividido em 16 capítulos, traz ao lume a desestruturação familiar como tema principal, tendo a guerra como pano de fundo, durante um período que vai aproximadamente de 1980 ao ano 2004. A trama foca-se numa família residente no município de Caconda, província da Huíla, que assiste impotentemente ao afastamento dos seus membros por conta da guerra fratricida que grassou Angola.

Nessa obra literária, sob chancela da Mayamba Editora, o personagem principal é tratado por Tio Ngoma. Um ex-combatente da Guerra de Libertação Nacional e chefe de uma família aludida, inicialmente composta por 9 membros (pai, mãe e 7 filhos). Com o despoletar da guerra pós independência, os filhos de Tio Ngoma são arrastados para a tropa, a medida que vão ganhando porte físico mais robusto. Do mesmo jeito que aconteceu na real realidade em outras latitudes desse fustigado país, o município de Caconda foi tomado quer pelos militares das FALA quer pelos das FAPLA/FAA. Isso fez com que os filhos do Tio Ngoma fizessem parte de forças armadas oponentes, resultando numa desgraça sobremaneira grossa, intensamente insuportável.

Obviamente, enquanto perdura e cresce a guerra, a vida de Tio Ngoma vai-se revelando mais agreste, profundamente difícil. O personagem habita numa comunidade rural onde a agricultura e a pecuária apresentam-se como as actividades essenciais para o sustento das famílias e o número de filhos determina a prosperidade dessas, porquanto a mão-de-obra para o trabalho de tal índole são geralmente os filhos. Logo, as dificuldades desse patriarca em garantir a sobrevivência dos que ficaram, ou dos que ainda não foram, confundem-se com a quantidade de areia existente na área por onde o mesmo tem os pés assentes. Até os afectuosos abraços, os sorrisos luminosos, tendem a lhe parecer um exuberante luxo.

Debaixo da intensa chuva de desgraças, Tio Ngoma (também um conservador acérrimo da fé que tem por Deus e um exímio defensor deste, inclusive quando, pelo tamanho de seu sofrimento, as pessoas mais próximas questionam-lhe o poder, a benevolência, a omnisciência, omnipresença, a sensibilidade e a gratidão divinas) dá asas a esperança crendo no regresso daqueles que lhe iriam ajudar a sair da chuva que o afoga dia após dia: os seus filhos. Será que esses irão voltar? Será que a fé irá triunfar perante uma guerra que, claramente, se alimenta de mortes e de extrema miséria? Essas são as principais perguntas para as quais se procura dar respostas ao longo da narrativa. Entretanto, apesar de o romance apresentar as devastadoras consequências da guerra, nem todo seu conteúdo é de dor, pranto, morte e luto. Nele o leitor dispõe da descrição de sentimentos, momentos, de atitudes susceptíveis de levá-lo a sentir-se no lugar mais aromatizado, tranquilo, belo e fecundamente apaixonante do paraíso. Essa fase justifica-se pelo amor incondicional de Florença pelo Jamba; pelo indelével encontro em que eles se desprendem de todos os medos, entrelaçando-se feito uma só trança, sob um cenário aconchegante de chuva; pelo desconhecido que morreu salvando a vida de Tio Ngoma; por Catarina continuar a cuidar e a amar o homem que a infectou com HIV; pela ajuda que essa teve de sua amiga e rival; entre outras justificações.

Em 355 páginas, Paulino Soma, o autor, propõe um romance em que se nota o cuidado em relação à forma de narrar. Para além das figuras de estilo, dos recursos estilísticos, da (re)criação de novas palavras (juntunidos, respiolar…) e da inclusão de expressões da língua Umbundu, o autor adorna a sua obra estabelecendo um certo equilíbrio entre o português padrão e os termos usados apenas pelos povos da província da Huíla, especificamente dos municípios de Caconda e Lubango, no período em que a trama se desenrola.

IMPORTÂNCIA DA OBRA

O romance de Paulino Soma reveste-se de uma importância exponencial para várias áreas do saber relacionadas com a República de Angola. Além de ressaltar os hábitos e costumes do povo huilano, “Viver e Morrer em Angola” traz uma abordagem do conflito angolano a partir de uma localidade sobre a qual pouco ou nada se escreve, pouco ou nada se estuda, de que pouco ou nada se conhece. A isso há ainda a acrescentar que o mesmo romance tem como ponto de concentração uma família despida de qualquer privilégio (pobre, analfabeta, camponesa e que não emigrou no tempo da quitota).

Tal facto impele o leitor a acreditar que o autor não tomou partido de nenhuma parte envolvida no conflito, ou seja foi imparcial. As pessoas a quem o autor deu vez e voz são aquelas que, feito o capim, sofreram enquanto os gigantes lutavam. Tratam-se efectivamente de angolanos que deram tudo, incluindo a própria vida, pela paz que hoje reina e não tiveram, nem terão, os seus nomes inscritos na mais singela das lápides. São os tais heróis anónimos.

Ademais, alguns excertos patentes na obra estimulam a galgar, em pensamento, um pouco mais além. Na verdade, Paulino Soma, com esse livro, orienta o leitor a concluir que o seu propósito primordial era homenagear os heróis anónimos, sobretudo quando na derradeira página escreve:

“Todavia, este país tem heróis que se levantam, juntando-se aos que já existiam antes; heróis que… lutam a favor da paz, da paz sem armas; da paz das almas; heróis que pretendem lembrar esta gente esquecida e brindar-lhe um pouco de descanso, um pouco de harmonia.”

SOBRE O AUTOR

Paulino Soma Adriano é natural da província da Huíla. Nasceu em 08 de Março de 1982. É doutor em Linguística pela Universidade de Évora; Mestre em Consultoria e Revisão Linguística pela Universidade Nova de Lisboa e licenciado em Linguística Portuguesa pelo Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED-Huíla). Foi docente no (ISCED-Huíla) e Chefe da Repartição de Ensino e Investigação do Português da mesma instituição. É, actualmente, Decano da Escola Superior Pedagógica do Cunene. Em 2013 publicou a obra poética “Amálgama D’Alma”; em 2016, o ensaio “A Crise Normativa do Português Em Angola: Cliticização e Regência Verbal – Que Atitude Normativa para o Professor e o Revisor?”. Foi assistente de revisão linguística e de projectos na ONG ACORD (Agency for Cooperation and Research in Developing). Coordenou o Projecto “Falando sobre a Terra do CTH (Consórcio Terras da Huíla)”.