Com essas roupas usadas, cabelo meio desarrumado e sorriso de quem vive de favores, nada posso dizer. Sinto uma imensa vontade de fazer algo toda a vez que ela abre a boca e diz suas típicas barbaridades, mas acabo sempre com a mesma pergunta, vagueando pela mente, infelizmente, sem resposta. Por vir de tão longe, ela não sabe como é estar na minha pele, desconhece o ofício de ser eu ou de alguém similar a mim nessa terra recém-descoberta. Desconhece a dor de não poder dançar ao ritmo que meu corpo exige toda a semana, pois, de onde vem, música é coisa fina, dois passos e volta a sentar-se, sem nem transpirar ou riscar o chão de tanto dançar, sem nem sentir o cheiro da alma dançante de seu parceiro.
Certas vezes, nas noites de quinta-feira, para ser mais específica, bato à porta do escritório do seu marido no outro lado da casa, onde escreve seus poemas que ninguém lê, nem mesmo sua mulher. Peço licença e explico minhas mil razões para um pedido tão nobre àquela hora da noite, e ele, sorridente como sabe ser tão perfeitamente, parecendo que não possui desgosto algum em relação à vida, sorri e diz que sim, ”tens minha permissão para ir, sei que te faz bem dançar”. Desço então até meu quarto, aprumo meu cabelo e envolvo meu corpo num vestido azul com riscas pretas, o mesmo de todas as noites de baile, mas limpo e divinamente engomado. Às nove da noite, quando a Lua beija o céu com a mesma paixão de quem procura se desfazer de uma frustração amorosa, deixo a fazenda com uma pasta preta ao ombro e uma turbante vermelha na cabeça, para simbolizar meu amor pelas casas de dança. Sou consumida por imagens do vinho derramado do copo que seguro firme enquanto danço e deleito-me nas visões sobre as passadas do meu parceiro, o mecânico que cheira a diversas almas e que segura meu corpo com a mesma segurança de quem carrega o Elixir da Imortalidade para seu amo. Assim, vou eu caminhando para o baile de Semba de todas as noites de quinta-feira, os únicos momentos durante a semana em que sou eu completamente, em que nada temo, o único lugar em que o céu não parece grande demais, pois as paredes daquele pequeno salão repleto de pessoas são imensuráveis. O mar perde seu infinito poder, e as danças entre os diversos corpos tornam-se nas únicas águas em que navegamos com o suor de nossas estruturas físicas e vinho tinto na mão. Beijamo-nos e dançamos sem parar nem para respirar, tornamo-nos em deuses sem promessas de paraíso, porque o paraíso é ali mesmo, no meio daquele pequeno salão nas escuras ruas do Prenda.
Enquanto espero pelo mecânico, ela aparece no fundo da rua, e o meu coração acelera. Sei que é o fim de uma noite memorável que quase chegou a nascer, mas que sucumbiu rapidamente. No seu carro grande, com ar de quem tudo sabe, olha para mim e pergunta aonde vou. Lembra-me de quantas vezes ordenou que não aborrecesse seu marido com meus caprichos de mocidade e voltou a repetir o que sempre dizia, que uma mulata como eu devia fazer diferente das negras, devia me valorizar e esquecer a existência dos bailes de Semba, que assim não chegaria a casar com um homem respeitado na sociedade e que seria igual a minha mãe, uma empregada por toda minha vida. Eu, sem resposta, pensei na pergunta que sempre faço a mim mesma: para quê discutir com a madame se ela é uma deusa, e tudo sabe?