Os textos selecionados são os que, ao nosso entender, se encaixam nos objectivos preconizados para presente comunicação.
Por existir uma fronteira entre a idealização e a materialização, o que torna qualquer comunicação propensa de equívocos,faremos um exercício racional no decorrer da exposição do nosso conteúdo. Assim sendo, não há e nem haverá pretensões de se arquitectar uma selecção preferencial, e sim os que se enquadram no nosso raciocínio analítico, ensaístico ou crítico, embora entendamos ser fundamental mencionarmos alguns dos precursores da poesia angolana, tais como José da Silva Maia Ferreira, Cordeiro da Mata, J. Cândido Furtado, Eduardo Neves, Lourenço de Carmo Ferreira. Mas, em momento algum, faremos uma incursão historiográfica, não por demérito, sobre as diferentes etapas da poesia angolana, nem sobre a luta pela independência nacional.
Assim, o conceito de cultura na presente abordagem abandona a esteira lexicográfica e circunscreve-se no âmbito de hábitos e costumes de um determinado grupo de indivíduos cuja matriz é a produção poética contra um sistema de alienação e desestruturação total. Subscrevemos as palavras de Eugénio Ferreira quando dissera que a literatura é a expressão de uma cultura. Entendemos que esta expressão “cultura”está intrinsecamente ligada como meio de combate à forma e ao modelo de vida material e espiritual impostos ou criados pela minoria de uma época, com intuito de explorar, alienar e extorquir os valores mais nobre de uma causa,cuja finalidade é a independência na sua totalidade.
Servimo-nos do poema “Poema Décimo TerceiroDe Um Canto De Acusação” de Costa Andrade: «(…)As barragens de Angola só serão fartura quando Angola for independente / Agora são fome / gente corrida dos seus quimbos /e despojadas de quanto tinha // Oaçúcar de Angola só será mel quando Angola for independente / Agora é amargo /chicote e prisão / tonga da morte//». O consciente do sujeito social, em Costa Andrade, manifesta por intermédio do subconsciente do sujeito poético as condições dramáticas de um país dependente. Porém, denota-se na produção poética do pré-independência várias vozes com expressões peculiares cuja base é a cultura da solidariedade e sua implicância objectiva na luta pela independência como finalidade. Daí que os diferentes sujeitos poéticos aferem o mesmo contexto de forma singular ao nível da transposição de sujeito, o que subjaz nas suas produções poéticas marcadas maioritariamente pelo disfemismo. Por exemplo, no poema de Tomás Jorge “Romance do Muceque”: «(…) Eu sei: Venderam-te o corpo ainda eras menina / Exploravam-te a graça ainda eras menina // Eras uma menina / Menina sem escola / Sem pai / E mãezinha lavando e tossindo / Morrendo a branquear a roupa dos outros //»
Estrofes marcadas pelas distanásias, se entendermos que a literatura, neste caso a poesia, é essencialmente uma manifestação ideológica contra um modo de vida que se julga regressivo e desumano. Servimo-nos das palavras de Freud, para maior consistência e sustentabilidade da nossa proposição, quando retorquiu “De que vale uma larga vida se é tão miserável, tão pobre em alegria e rica em sofrimentos que só se pode saudar com a morte?”. Sem a pretensão de nos posicionarmos, entendemos que tal retórica deve, não como imperativo, ser estendida aos escritores que esbanjam uma literatura meramente mercantil. Retomemos ao sujeito poético no poema “Terceiro Poema do Prisioneiro” num discurso descritivo:
«Retirados / Deixamos a casa / A mulher e os filhos/ fomos separados // Escondidos da Cidade / Pensamos nos amigos/Falamos com os dedos / Dedilhando a grade //»
O disfemismo marca substancialmente uma grande parte da produção poética por causa do grau de comprometimento dos sujeitos poéticos do pré-independência. Há uma ruptura categórica no código de leitura das abstracções ilusórias para o real social concreto. Tal ruptura fez com que os sujeitos poéticos refutassem a displasia social que imperava coercivamente na época. Daí que, no poema “Exortação”, nos alerta Maurício Gomes:
«(…) Deixemos os moldes arcaicos / ponhamos de lado corajosamente suaves endeixas / brandas queixas e cantemos a nossa terra e toda a sua beleza //»
No referido poema, o sujeito poético exorta ainda aos companheiros de que é preciso escrever a poesia de angola. Uma produção que reportasse artisticamente o drama do contexto, que operasse uma revolução nos modus operandi dos diferentes sujeitos. Tal postulado, em nosso entender, não subentende, de modo algum, que tanto a forma como o sentido das produções tenham de ser lineares, de carácter sociológicos ou históricos. Mas arbitrárias e de cunho artístico que prestigiem a expressão dos oprimidos e as condições indigentes, só para citar. Observámos, através das várias leituras analíticas e comparativas entre o modo de produção poética e modo de vida imposta pelo colonizador, que a desenvoltura da cultura da solidariedade na poesia angolana não se circunscreveu no fito da emoção e sim no dever humano; ode não se calar diante das injustiças mesmo que o levantar das nossas vozes custe as nossas vidas. Sobretudo, do patriotismo racional dos sujeitos sociais– poéticos. É possível ler, em António Jacinto, a coabitação metafórica marcada pelas formas verbais “quer”, “sabe” e a transposição rácica, no poema “Poema Da Alienação”:
«(…) Mas o meu poema não é fatalista / o meu poema é um poema que já quer [independência] / e já sabe [solidarizar-se] / O meu poema sou eu-branco/ montado em mim-preto a cavalgar pela vida //»
O sujeito poético, em António Jacinto,deu-nos um dos exemplos mais significativos da cultura da solidariedade na poesia angolana na perspectiva antropológica. Retomemos à questão rácica e não sejamos utópicos porque sempre houve uma dialéctica entre o branco e o negro. Nem perderemos energias em analisarmos o grau de superioridade ou de inferioridade. Mormente tirarmos ilações positivas fruto da capacidade que os sujeitos poéticos, em Alda Lara e António Jacinto, apresentam em forma de linguagem metafórica a transposição multirracial. Desta feita, para ilustrar a proposição exposta, servimo-nos do poema “Rumo” de Alda Lara:
«(…) o mesmo sol ardente nos queimou / a mesma lua triste nos acariciou/ e se tu és negro e eu sou branca/a mesma Terra nos gerou! // Vamos companheiros! É tempo!»
Portanto,A cultura da solidariedade na poesia angolana refere-se à capacidade de transposição do sujeito poético aquando dos múltiplos problemas do sujeito social, e decorre da conscientização bidimensional: imaginária e produção poética que culmina com a luta armada. Todo sujeito poético por ser um sujeito social perfaz uma dupla transposição. Todavia, nem todo sujeito social poderá ser um sujeito poético. A sua implicância na luta pela independência de Angola dá-se por meio de uma série de textos pré-concebidos desprovidos de conteúdos simplistas e de excessos de zelos metafóricos. Porém, com uma carga pluralista e maioritariamente marxista, como nos atesta Alexandre Dáskalos, no poema “Da Boca Da Noite Surgiram Mendigos”:
«Da boca noite surgiram mendigos /vinham coma ganga dos operários / o terno dos escriturários / o vestido das dactilógrafas/ e os sapatos duma miséria limpa //(…)/ A vida de olhos vagos / de paisagem despida / Vida sem aroma e sem frutos / suportando-se apenas //(…) Da boca da noite surgiram mendigos / vomitados por uma cólera feroz / vulcão da chama de outros dias dos que não querem esmola//(…)»
Há dois processos que compreendemos que não podem ser marginalizados na cultura da solidariedade na poesia angolana:Primeiro, a dialéctica que se refere à crença da liberdade genérica. Uma crença racional, de postura que preze e valorize o bem comum, fora dos meandros da presunção e da ignorância. Por exemplo, em Agostinho Neto, numa alusão metafórica “Ninguém impedirá a chuva”. Neste quesito, a dialéctica prioriza implicitamente uma produção de esperança, de certeza e de liberdade. Num recurso pragmático, Costa Andrade no poema “Poema Décimo Terceiro De Um Canto De Acusação”:
«(…)/O homem de Angola vem chegando independente / do horizonte / das florestas e montanhas / da guerrilha //»
Quando nos referimos ao pragmático, não é a linguagem em si, mas a forma como a linguagem é elaborada sem muita preocupação estilística. Segundo, a epistemológica que se consubstancia na tomada de consciência desprovida de cinismo, uma produção voltada ao humanismo, ao espírito da solidariedade imparcial. Por exemplo, no poema “Noites de Cárcere” de Agostinho Neto, o sujeito poético recorre-se à metáfora retórica no sentido de aludir aos sujeitos sociais de que não haverá independência enquanto houver injustiças:
«Oh! Quem dormirá quando ao lado há os gritos de louco / que pulam da janela para lhe apunhalar a carne /sobre o cansaço de insónias angústias e expectativa? //»
Os diferentes sujeitos poéticos do pré-independência apercebem-se de que abandonar os destinos da pátria é caminhar ao acaso, e que agir implica necessariamente opor-se aos problemas impostos pelo contexto.Entendemos que para Rousseau, a sustentação das assimetrias no plano social tem como base a propriedade, delas surgem as leis, as relações de explorações.António Jacinto, em “Monangamba”, questiona o modo de relação entre o colonizador e o colonizado:
«(…) Quem se levanta cedo? / quem vai à tonga? / Quem traz pela estrada longa a tipóia ou cacho de dendém? / Quem capina e em paga recebe desdém?//»
Por esta razão, António Cardoso, no poema “É Inútil Chorar”, lembra-nos que «É inútil mesmo chorar/se choramos aceitamos/é preciso não aceitar // (…)»
Em forma de resumo, a cultura da solidariedade na poesia angolana assenta-se em três perspectivas. A primeira, a solidariedade patriótica tem a ver com os poemas que exaltam e estimulam a luta pela independência nacional; a segunda, a solidariedade nativista são os poemas que valorizam o homem nativo, o que não significa que sejam escritos por sujeitos poéticos nativos; a terceira, a solidariedade lírica estende-se à expressão mais íntima do sujeito poético. Não se trata de um lirismo vulgar e ilusório, mas de um lirismo marxista. Contudo, há uma inter-relação entre as três perspectivas referenciadas. Como sempre, não terminamos, ficamos por aqui.