A estação quebrada

Meus cabelos passeavam-lhe o rosto. Ele tinha sob as mãos a mesma intenção que demonstrara nos já idos anos da nossa adolescência. O silêncio da tarde tinha o pecado dos motéis luandenses, e os nossos olhos, como pares de ginguenga, atiravam-se castanhas assadas – não sei o que quero dizer com isso; os enigmas que nos envolvem se trazem assim.

Era uma tarde miúda cuja inocência nos isolou no beco da Zinha, e estava eu com os panos amarrados à cintura e uma blusa cuja ousadia mostrava os bicos dos meus seios que, insistentes, bailavam até para o vento do dia. Zarito, agora formado, depois de anos em Cabinda onde até chegou de deixar o prepúcio – kiyungueiro até os seus 14 anos; na altura, a vergonha lhe calçava a alma. Só mesmo a viagem a Cabinda para o trazer de volta como que renovado.

(…) Nosso (re)encontro deu-se na estação quebrada, ali, onde Xikinhha, aproveitando como esconderijo do bica-bidon, deixou que o atrevido da rua, Nuno, muito mais conhecido por Molho-doce pelo rosto lindo e tom de pele que denunciava a descendência tuga que lhe ia no ADN, lhe rompesse o cabaço; foi lá, também, que apanharam a kota da Fató, Ngaxi, em malcriadés com o falecido inquilino da minha avó. A estação quebrada tornou-se, desde então, a marca das loucuras e símbolo do amor, por isso, de propósito, marquei o meu (re)encontro com Zarito naquele lugar. Queria que fosse único e, se possível, lhe dar minhas sinagogas como local das suas mais secretas confissões. Ouvi, uma vez, da mãe da Xikinhha, que um homem nunca esquece quando lhe doam uma sinagoga inteira. Nunca entendi direito isso, mas conheço as intenções deste agrupamento de palavras, porém fi-lo como nos prescrevera a tia Guida.

– Zarito, como é Cabinda? Deves ter gostado de lá estar. Ficaste uns dez anos lá?!

Sem responder, olhou em volta, como que um vigilante desconfiado e desfez-se entre a permissão de me possuir que acho ter descoberto nos meus olhos, ou, talvez, seja a química que muitos dizem existir entre nós que lhe convidou àquela ousadia. Agora, sim, percebo que a mudança não se limitava aos aspectos físicos, já que Zarito estava completamente transformado. Até já falava com a ponta dos lábios perto dos meus e com as mãos desviadas para a minha cintura, e a timidez que lhe permitiu viajar sem, sequer, me tocar as bochechas ou as unhas, estava vazia; estava ousado e sua respiração ensaiava sobre a porta dos meus ouvidos uma canção lenta, a mesma que Xikinhha diz sentir de Zazá quando este lhe rompera a santidade. Sem nada falar, encostava-me à parede. Cabinda fez-lhe muito bem, deu-lhe o atrevimento do seu irmão mais velho, que de Santos só tinha o nome, conhecido no bairro e arredores pelo pipito grande com que vagueava as casas das putas. Tocou-me nos braços e remou seu corpo contra o meu, e, em mim, rodeavam sensações malucas e arrependimentos por estar com aquela jeans apertada – quem dera fosse perto da casa da Miloca, ia trocar rápido aquela calça por uma saia, afinal, só ela tem o meu tamanho. Mas não me perco, deixo-me envolver pelas mil e uma razões de estar ali com Zarito, faz anos que o desejo entre as cidades mais longas em mim, e nunca se sabe, se a sua timidez me rouba o protagonismo já amanhã, então, aproveito tocar a magia do instante com a ponta da minha vida. Aquela não era, de certeza, uma quarta-feira qualquer: a terra parecia estar amarelada, e o sol, com a vergonha que lhe caracteriza nesta fase do ano, nem se dava o trabalho de gritar; a estação quebrada que nos últimos anos se transformara em abrigo para bandidos e ngombiris estava vazia como se os deuses jogassem a favor da nossa maluquice. O estranho mesmo era a inexistência doutras pessoas: nem o Man Brito e a maluquinha da Nazaré, autênticos ladrões de protagonismo, se faziam presentes; como assim, nenhum carro?

– Não achas isso estranho, Zarito?
– É! Estranho é mesmo este teu sonho, porque continuo cá em Cabinda e só se passaram ainda alguns meses desde que saí de Luanda.

Assustei-me, e, de repente, estavam Nucha e o meu primo, Gomito, a me olhar como se de uma desconhecida se tratasse. Sobre a cama, escondi-me por baixo dos lençóis com todas as vergonhas invadindo-me o rosto, mas não me foi impossível de ouvir os seus risos, abusando-me como se nunca tivessem tido um sonho. Quase desmaiei quando Nucha, lançada aos montes de gargalhadas, disse gritando:

– Você sabula, ia, Camila!

Pouco tempo depois, enfrentei os medos em mim. Despreocupada, agora, desabriguei-me daqueles lençóis e, com os olhos atentos aos cantos do quarto, perguntei-lhes:

– Ouviram tudo?
Insistiram em gargalhadas, porém olhando-me com a mesma estranheza do instante. Calaram-se e repetiram em coro:
– Você sabula, ia, mana!
Voltei para dentro dos lençóis.