Alquimia do Hip Hop: do nada para alguma coisa

Entre as catacumbas de um projecto social falido, nascia, na década de 70, em Nova Iorque, Estados Unidos, uma cultura que hoje vem se confirmar como uma das mais influentes da era moderna. Os escombros dos prédios arruinados de Bronx enganaram os abutres de praxe que lambiam os lábios com um livro de história nas mãos, com folhas brancas, ansiosas para usurpar as palavras da lápide “aqui jaz uma comunidade negra e latino americana”.

A morte devia ser apenas uma questão de tempo, não era possível prever outro destino num espaço com estrema violência, carência e descaso institucional. Só restos deixavam rastos naquele espaço, resto de toda produção cultural da época. No entanto, o insólito aconteceu: de repente, extractos de artes marciais misturam-se com extractos musicais expelidos por um sistema de som potente exposto na rua; as paredes da cor de um cinismo que valorizava mais o betão em detrimento das pessoas ganharam identidade com os tags (primórdios do grafitti) e subitamente, a alquimia aconteceu, do nada nasceram os quatro elementos nucleares da cultura Hip Hop, a saber: o Dj, Graffite, o Break dance e o MC.

O Dj assumiu desde então um lugar preponderante para a cultura: é o interconector dos quatro elementos, colocando a música que une o Mestre de Cerimónia aos dançarinos que dançam em volta de paredes grafadas com desenhos. Além do papel de eixo, a cultura lega a três Djs a sua identidade:

1 – Dj Kool Herc: é creditado como pai da cultura, tendo a criado através de uma iniciativa de fazer uma festa para arrecadar fundos para que a sua irmã, Cindy Campbel (também conhecida como a mãe da cultura), entrasse para o ano lectivo com maior dignidade. A iniciativa veio da experiência que o Dj tinha de uma tradição jamaicana de colocar sistema de sons potentes na rua e entreter a população à volta.

2 – Dj Afrika Bambaataa: creditado por ser o padrinho da cultura, pois foi ele que cunhou o nome de Hip Hop àquela miscelânea de manifestações artísticas e introduziu um quinto elemento que norteia todos os outros: o conhecimento.

Afrika Bambaataa: creditado por ser o padrinho da cultura

3 – O Dj Grandmaster Flash: creditado como um grande inventor e divulgador das técnicas que, até hoje, definem o diferencial de um Dj desta cultura, dos restantes djs. Técnicas como o scrash, por exemplo.

A cultura ia se maturando paulatina e espontaneamente. Os Mcs saíram de anúncios básicos a palavras que moviam multidões como se de gritos de guerra se tratassem. As possibilidades de expressão se expandiram até chegar o “the messeger” curiosamente do Grandmaster Flash and the Furious Five do lendário letrista Melle Mel que trouxe ao hall do rap as mensagens interventivas. A partir daí, as estéticas das letras tornaram-se tão versáteis a ponto do rap escapar sempre da captura dos discursos por parte dos poderes institucionais, como ênfase nos poderes corporativos. Coisa que veio a acontecer só nas últimas duas décadas. O lirismo de Rakim coabitava com as letras ácidas e contundentes do Ice T, que se debruçavam a respeito da vida das ruas periféricas. E, ao mesmo tempo, havia espaço para músicas com forte teor político como do Public Enimy ao lado de elucubrações filosóficas de artistas como o KRS One.

A versatilidade temática do género levantava uma bandeira clara: jovens periféricos podiam tomar posse dos seus próprios discursos e serem activos na edificação das próprias vidas e na vida das respectivas comunidades. E esses discursos não eram restritos ao verbo, isso espalhou-se aos outros elementos da cultura. Essa bandeira acabou por contagiar o mundo e Angola não foi excepção.

No final dos anos 80 a cultura foi se instalando em nosso território, coincidindo com o advento da democracia, e, consequentemente, o desmoronamento do sonho socialista de implementação de um Partido Único.

O Hip Hop deu voz a uma juventude pluralista que nos seus primórdios foi representada por grupos como GC UNITY, Filhos Da Ala Este, SSP e entre outros.

A vida da cultura em Angola, influenciada pelo que se vivia fora, também acompanhou o distanciamento do MC dos outros elementos. No entanto, a heterogeneidade do género sempre se manteve intacta. Podemos encontrar uma variedade de texturas literárias no rap. Refiro-me especificamente aquilo que podemos chamar de subgéneros literários dentro desse género musical que congrega a poesia e o ritmo.

Por exemplo:

Hoje o sol nasceu mais cedo

Começou o dia

O galo cantou as 04:00

Motivos pra poesia

Agradeço a Deus

Por mais um dia de vida

06:00 horas da manhã

Tou pronto pra batida

Bidon nas costas

Não tenho água em casa

Vou roubar debaixo da ponte

Tenho de ir em brasa

De seguida vou ao Kixima

Caular o pitéu

Uma lata de leite

Dois ovos e um quibéu

– Mc K, atrás do prejuízo

Nessa música, podemos ver uma poética fortemente influenciada pela crónica, em que um  retrato quotidiano é capturado pelos versos.

Na hora de dormir deixe um olho bem aberto

És inteligente, o país é dos espertos

Na República Popular em biolos

Ponho a colher na panela nem que for para corrolos

Depender de tio rico não adianta

O gajo tem corpo de humano e mãos de vaca

Não és da frente? Corre atrás, não perdes nada

Ninguém se aleija quando lhe cai uma fezada

– Francis, República do Biolo

Nessa letra, podemos encontrar um lirismo que se aproxima mais da poesia tradicional escrita, onde o tratamento da língua está manipulado de formas a fazer passar as impressões do eu lírico ao ouvinte por meio de figuras retóricas clássicas.

A par de letras como essas, temos uma infinidade de formas – expressões literárias dentro desse género musical que o tornam muito eclético. O exercício dessa poética é chamado de liricismo que, ao contrário do lirismo que abrange só a estética da poesia tradicional, o liricismo abraça uma poética elástica que flerta com os contos (story tellen), com a crónica e etc.

Em suma, a cultura hip hop é fruto de um processo alquímico comunitário, onde o nada aparente gerou um universo de possibilidade de expressão de vários discursos quer sejam visuais, corpóreos, linguísticos ou sonoros. Tudo isso permeado pelo quinto elemento, o conhecimento, para a produção de formas de vida mais activas e produtivas dos seus praticantes. Como consequência, novas estéticas discursivas foram criadas e também novos elementos como o beatbox, a linguagem de rua, o empreendedorismo de rua, moda de rua, saúde e bem-estar. Tudo graças a uma atitude de resistência à captura do senso criativo – no aspecto mais lato do termo – das pessoas. Que as futuras gerações possam manter este espírito.