Angola: a intermitência da morte

E naqueles seis meses ninguém morreu. O presidente, chefe do executivo, na sua primeira intervenção disse: “Na verdade é um facto que nem nos hospitais, nas estradas, nas festas, nas praias ou nos locais de trabalho morrera alguém nestes meses. Mas estamos a enveredar esforços para sabermos o que terá ocorrido para suceder este fenómeno e, tão logo tenhamos conhecimentos sobre as causas que levaram a morte a desaparecer do nosso país, avisaremos, por meio dos nossos órgãos de comunicação públicos e privados, ao povo, porque nós já vivemos problemas maiores e, graças a Deus, aos anjos, a Jesus Cristo, a virgem Maria, a Mamã Muxima e, sobretudo, a boa vontade do povo, pudemos ultrapassá-los.”

Os hospitais estavam cheios de pacientes impacientes, pois, em condições normais, nos meses em que a morte ocorria facilmente, a maior parte deles já teria ido para a outra dimensão da vida mais cedo.

A morte apenas é um problema para o ser humano quando ocorre em grande número numa região ou quando acontece por causa de uma epidemia.  

Nas estradas ocorriam acidentes rodoviários, nos locais de trabalho da população idem. As pessoas continuavam a apanhar paludismo e febreamarela. As jovens que tentavam abortar os seus inocentes fetos não conseguiam.

O Ministro da Saúde, que era um bom cristão, pertencente à igreja católica, apostólica e romana, na sua intervenção disse: “Nós somos um povo abençoado, porque todo e qualquer povo contentarseia se, porventura, um dia a morte se lhe desaparecesse. Há seis meses que estamos sem registos de mortos nos nossos hospitais e, se essa for a vontade de Deus, pai todopoderoso, que assim seja, estaremos felizes por sermos o primeiro povo que, sem o uso da ciência ou outros saberes humanos, se livrou da morte. Seremos um exemplo para os outros países e vamos, possivelmente, receber todos os seres humanos do resto do mundo que não desejarem morrer, mediante o pagamento de uma taxa de entrada no nosso território.”

O Ministro das Finanças, baseandose nas palavras do seu colega que tutelava a pasta da saúde no executivo, afirmou: “Será uma maisvalia para o país, vamos poder, aproveitandose desse fenómeno único, angariar mais receitas para os cofres do estado, pois, todos os que almejarem fugir da morte virão em breve ao nosso país. Vamos receber cientistas, médicos, técnicos de informática e muitos homens abastados que há muito lutam para encontrar a cura da morte.”

O partido que governava, sem ter a pretensão de perder votos nas próximas eleições, orientara o seu secretáriogeral para marcar um encontro com os jornalistas na sua sede e dissertar sobre está milagrosa ocorrência. No encontro com os jornalistas, o secretário, depois das boas tardes, em gesto de cumprimentos, e do almoço com os mesmos, foi questionado sobre o que o partido no poder pensava a respeito da não ocorrência de mortes no país nos últimos tempos. Ele, que vestia um fato azulescuro, gravata vermelha, sapatos de cor preta, com um relógio no pulso, uma aliança no dedo anelar esquerdo e uma mascote de ouro no pulso direito, disse: “Acreditamos que todos os membrosmilitantes, amigos e simpatizantes do nosso partido são religiosos e cremos também que Deus sabe que o nosso partido tem feito tudo que pode para erradicar as doenças e baixar drasticamente a adesão da população aos nossos hospitais que, atendendo a situação económica e financeira que o país está a viver, têm apresentado um défice no apoio médico e medicamentoso. Portanto, o nosso senhor decidiu mostrar ao povo que o nosso partido tem governado com a sua ajuda e respondeu em bom tempo as súplicas dos líderes do nosso partido.”

Os partidos na oposição rapidamente começaram a tecer comentários sobre as palavras proferidas pelo secretáriogeral do partido que governava. Para uns, os que recebiam apoios do partido no poder, aquelas palavras foram sábias, mostravam o carácter político e religioso dos homens que governavam a nação. Para outros, os que almejavam um dia chegar ao poder, não passavam de palavras para boi dormir, tremenda falácia.

As igrejas, sobretudo a Universal do Reino de Deus, não gostaram nada do que ouviram por parte dos partidos políticos, do titular do poder executivo, dos ministros, da saúde e das finanças, e dos jornais que, para aumentarem o número de vendas, colocavam o não acontecimento de mortes nos últimos meses como assunto de capa com os seguintes títulos: ANGOLA DIZ ADEUS À MORTE; MAMÃ MUXIMA PROTEGE ANGOLA, DEUS AGORA VIVE EM ANGOLA; A MORTE JÁ NÃO DANÇA SEMBA; ANGOLA SEMPRE A SUBIR; KYANDA NÃO QUER MORTOS.

Segundo os padres, anciãos, bispos, pastores, reverendos, catequistas, acólitos, pioneiros regulares e servos de Deus conforme as igrejas chamavam os seus líderes religiosos – a morte é obra de Deus, pois, está escrito: “Do pó vieste e ao pó voltarás!” Assim, só há vida porque existe a morte, a morte é a chave da ressurreição e sem morte não há ressurreição e sem ressurreição não há igrejas, sem igrejas não há cristãos, portanto.

Questionados sobre o assunto, os líderes religiosos do país ripostaram que às igrejas meramente bastava continuar a rezar e orar sem cessar, fervorosamente, a Deus, pai todo-poderoso, criador do céu e da terra e de todas as coisas visíveis e invisíveis, pai de Jesus e de Lúcifer.

Passaram seis meses sem ocorrer morte no país, um semestre, o governo, que no princípio estava feliz com este fenómeno, já não aguentava apoiar com médicos e medicamentos os hospitais públicos, as clínicas privadas não ganhavam muito no tratamento dos seus pacientes, porque a regra económica de que quanto menor for a oferta maior será a procura se fazia sentir nos países onde elas iam comprar os medicamentos e contratar os doutores. Os coveiros já morriam de saudade de ouvir e ver os choros dos entes que perdiam os seus queridos. As associações de agências funerárias ameaçavam realizar manifestações para exigirem o regresso da morte, porque os caixões estavam a mofar. As igrejas sobretudo a Católica, Apostólica e Romana, a Universal do Reino de Deus e a Kimbanguista rezavam e oravam sem cessar, faziam vigílias e novenas.

Foi assim que quando se deu a última badalada da vigésima terceira hora do trigésimo primeiro dia de Dezembro, para iniciar um novo ano, todos os que padeciam gravemente de diversas doenças: paludismo, diarreia, hepatites, avc, hemorróides, cólera e outras, morreram sem procrastinação.

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