As ilhas no “INSULAR” de Aline Frazão

Análise de alguns textos na relação com a situação sociopolítica do país

Estamos cansados de ouvir músicas cujos textos são de temas repetitivos, que dizem tudo, tudo que o autor do mesmo achar, não dando nenhuma margem de dúvida, de mistério, incerteza, ou curiosidade a quem ouve, a quem lê. Dizem cantar o amor, mas cantam traição, infidelidade, poligamia, cantam desrespeito à mulher. Por isso, sugerimos Aline Frazão. Não pretendemos falar da sua capacidade musical, vocal e de interpretação que, verdade se lhe diga, são extraordinárias e nota-se logo na alma que ela emprega ao musicar textos que até não são de sua autoria como “a louca” e “o som do jacarandá” de Capicua e de Ana Paula Tavares respectivamente, do último álbum.

O que nos interessa aqui é o texto, órfão da sua musicalidade. Interessa-nos, nos seus textos, o que ela não diz, o que está por detrás das palavras. Ou seja, importa-nos analisar a poética nestes textos cantados, relacioná-la ao que o título – “Insular” – sugere e, principalmente, leituras possíveis relacionadas à realidade sociopolítica do país.

Assim, o “Insular” pode ser compreendido como um isolamento provocado pela saturação do “comum” do dito “normal”. E tudo à volta do álbum – tudo que não tem a ver com o texto ainda – remete-nos a isso. A começar pelo local escolhido por ela para a gravação do álbum: uma ilha escocesa. Distante do espaço urbano habitual, “longe do ruído do betão”[1], ela constrói este álbum. Mas como disse, não nos interessa o álbum para este artigo.

Foi-nos fácil notar o domínio que ela tem com a palavra, pois a sua poesia, como, supostamente, qualquer poesia, não diz literalmente nada. Ao lermos o “A prosa da situação”[2], perguntamo-nos o que quererá ela dizer.

“Noticiário abriu outra vez
anunciaram que o ouro azul de chão
tem dono
tem dono
[…]”

Aline Frazão_Foto de Dinis Santos

Para respondermos a esta pergunta, temos de ter em conta duas leituras a esta estrofe – primeira do texto em análise: a primeira remete-nos ao que as palavras dizem, segundo os seus significados primários. A segunda resultará do que estiver por trás das palavras, tendo em conta ao contexto. Sendo ela angolana, nascida em Luanda e, tendo em conta a sua capacidade crítica a aspectos sociais, demonstrada em outros fóruns, podemos construir uma segunda leitura:

“Noticiário” remete-nos à informação formal, pela comunicação social, e informal, transportada pela boca do povo. “Chão” remete-nos a todos bens naturais e produzidos, que, supostamente, pertence a todos angolanos, mas que só um grupo pequeno tem acesso e é por todos sabido, ou seja, “… o ouro azul deste chão/ tem dono” há mais de trinta anos. Só os reis demoram anos a fio no poder. Tendo em conta a isso, a autora de “Insular” sugere-nos que, talvez, tenhamos um rei ao invés de um presidente, pois “…quando o rei fala, o reino cala”[3].

Porém, esta obra, ou melhor, os poemas cantados nela, sugerem-nos mais do que isso. Não sabemos se intencional ou não, mas, tal como o título sugere, em alguns textos há uma ilha, um “Insular”. Não porque encontramos a mesma palavra em alguns, mas pelas imagens que os mesmos apresentam. Ainda em “A prosa da situação” há uma ilha. Para entendermos melhor precisamos perceber que esta palavra tem como significado primário “pequena porção de terra no meio da água, isolando, a fim de preservar, vidas marinhas”. A partir daí, podemos construir um campo semântico, ou seja, ilha pode ainda significar, “isolamento”, “distanciamento”, “despartilha”, “preservação”. Por esta ordem, há uma ilha neste poema a partir do momento em que os recursos naturais – “… o ouro azul deste chão…” – e tudo produzido a partir deles serem consumidos por uma minoria – “a nobreza de pé/aplaudindo de mãos gordas” –, constituída pelo rei e os seus conselheiros, que formam uma ilha no meio de uma multidão de oceano que é o povo – “…quando o rei fala, o reino cala”.

No texto “só silêncio”[4], o sujeito poético procura um ser superior a ele, que, supostamente, deve  encontrar-se a um nível superior ao dele. E quando procuramos por um ser superior a nós, é porque nos encontramos desorientados, precisando de uma linha de orientação. Vejamos a primeira estrofe:

“Subi a montanha
não voltei
procurava deus
não encontrei
[…]”

Nesta procura, o sujeito poemático sofre uma desilusão, pois não encontra aquele que era suposto orientá-lo. Numa descodificação mais específica, podemos concluir, como sugestão, que esta desilusão remete-nos à mesma que os angolanos carregam há anos, que agora se acentua com a crise e consequente com a falta de uma orientação, liderança. Mais uma vez, este ser superior isola-se, afasta-se, pois ninguém o encontra. Aqui está a “ilha”, mais uma vez. Vejamos também a segunda estrofe que sugere-nos, exactamente, que o povo passa necessidades:

“O povo esperava
e da esperança
fez-se silêncio”

No meio desta necessidade encontra-se uma minoria que não sente estas dificuldades, formando esta “ilha”.

Em outros poemas cantados é mais nítido a “ ilha”, o “insular”, como no texto que dá título ao álbum:

“Quando o sol nascente deixou ver
no horizonte a ilha se estender
como um manto em tons de prata à luz do amanhecer
[…]”

Assim também, no poema “O homem que queria um barco”, a “ilha” é mais simples de ser descoberta:

“Dizem que ela não existe
que ilhas já estão todas escritas
que somos loucos os dois
que morreremos de sede sob o sol
e nem sabemos navegar
[…]”

Portanto, podemos concluir que os poemas cantados da cantora angolana estão carregados de sugestões de leitura, algumas delas, aqui, acabadas de serem analisadas. E no final perguntamo-nos: é poetisa que canta ou cantora que faz poesia? Seja como for, Aline Frazão é uma artista de mão-cheia.

[1] Insular do álbum Insular
[2] Sexta do álbum
[3] Verso da segunda estrofe de “A prosa da situação”
[4] Segunda faixa do álbum