Confissões de uma mentirosa compulsiva – Parte 02

O passar do tempo começou a tornar as conversas entre Yanini e Kiese demasiado frequentes. E isso, para Yanini, começou a tornar-se incómodo. Por que um homem comprometido tem tanto tempo para conversar comigo?, passou a questionar-se. Talvez fosse normal, cogitava. Talvez ambos fossem do tipo que pouca importância dava para as amizades do sexo oposto, vaticinava. Talvez ele fosse demasiado diferente mesmo! Talvez fosse coisa de escritor. Os artistas são todos fora dos padrões. Assumia convicta. Nessa trilha, deixou-se levar e andar.

Conviviam assim, entre confidências literárias e perguntas sobre a rotina diária. Mas algo martelava o pensamento de Yanini. Amizades silenciosas são perigosas, há dúvidas que servem de arestas por isso devem ser limadas. Começou a ficar inquieta. Não sabia ao certo o que sentia e era um incómodo para ela sentir que podia estar a confundir coisas. Ele é apenas alguém simpático, demasiado simpático, talvez, mas simpático! Foi honesto comigo, nunca me escondeu a namorada, mas que necessidade é essa de estar sempre a falar comigo? E onde pára essa tal namorada? Aí meu Deus!, suspirava atónita, roía as unhas, batia o pé e olhava para o telemóvel. Sentia saudades.

No dia em que a moça decidiu dar um basta às conversas, Kiese parecia mais animado. A conversa fluía, os risos e segredos também. Yanini confessou-lhe que a sua vida se parecia ao Poema em Linha Recta de Pessoa. Kiese explanou:

– Agora que falaste sobre este poema, me deu vontade de ler pra ti

Yanini ficou ainda mais confusa, segurou o semblante e deixou-o ler.

“Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo…”

A medida que o Kiese avançava, com a sua voz grave e a dicção delicada – uma mistura um tanto insólita – o sistema límbico de Yanini começou a falar mais alto. Colocou a mão na boca e abafou o gemido, Kiese não percebeu o efeito que a sua leitura provocava na moça. Pediu-lhe que lesse também um poema e ela, como se estivesse a recuperar o fôlego do efeito de êxtase, leu Grão de Areia, de José Craverinha. Tinha um velho livro do poeta moçambicano e aquele era o seu poema favorito.

Naquela noite, após a retirada de Kiese, Yanini viu-se ensopada pela enxurrada de pensamentos. Passou a noite em branco, validando a convicção de que a insónia é o excesso de palavras no coração. E ela tinha o coração cheio. Debatia-se entre avançar com a revelação dos seus sentimentos ou não. Corria o risco de perder uma amizade bonita – pelo menos era isso que achava. Não cogitou, em momento algum, que namoraria com Kiese, mas sempre acreditou que nenhuma amizade se solidifica sem honestidade. Afinal, a paixão era um sentimento seu, demasiado pessoal, e ela não pedia reciprocidade, só verdade. Mas quando o revelou a Kiese não foi compreendida. Foi rude. As pessoas sentem-se ofendidas pelos sentimentos que despertam nas outras, ficam irritadas, utilizam palavras-armas, ferem. Yanini, envergonhada, decidiu afastar-se. A melhor queda é cair em si, assumiu e seguiu a vida.

Cada um seguiu a o seu rumo, criou o seu mundo, realizou-se, não se realizou. Kiese continuou a amar quem sempre amou e Yanini tentou e não conseguiu amar. A vida é assim, há quem sem precisar caminhar longas distâncias encontra o seu par. Há quem ama e é amado com a mesma força, mas algo impede de viver esse amor. Há quem tem como amor da sua vida alguém que tem o seu amor também. Há quem não ama e tem um amor que o ama. Há quem faz amor com alguém que não é o seu amor. Há quem ama alguém que não é o seu amor. O tempo passou, a poeira baixou, os ânimos se acalmaram. Yanini seguiu consciente do seu espaço e Kiese confuso consigo e com o mundo. Diz-se que os acontecimentos que não podemos controlar têm o nome de destino, talvez tenha sido este o motto que os levou a uma nova aproximação. A vida é assim, passam-se anos, mas liga sempre as pontas soltas, de algum modo o – se suspenso teria de ser resolvido. Perdoaram-se os equívocos, as insensibilidades, as mágoas. Pegaram o fio de onde terminou e deram continuidade. Yanini, como sempre, com a verdade e Kiese a esquivar-se, falava pouco de si e sobre a namorada utilizava verbos no pretérito perfeito do indicativo.

Yanini questionava-se esperançosa se seria o momento certo, indícios de que ainda não o havia esquecido. As aparências externas deixam-nos confusos. A que chamaríamos essa relação? Flerte? Amizade? Interesse mútuo? Conversas-intermináveis-sobre-tudo? Existem relações que carecem de uma nomenclatura, uma definição, um verbete no dicionário. A cabeça da moça explodia, badalava, como o sino da igreja, próximo da sua casa. O tal sino que, certa noite,  ao tocar, fê-la despertar assombrada, às 22h00. Yanini acendeu o candeeiro eléctrico. Ela adorava aquele candeeiro por causa da cor da luz: rosa. Apagou as lâmpadas e a sala acabou inundada pela cor rósea. Aquela luz causava um certo desconforto, não era um rosa-bebé que transmitia paz e doçura. Era uma rosa adulto, desiludido, que fazia lembrar vinhos baratos e cigarros. E era exactamente por isso que ela amava o candeeiro, pelo contraste! Ouviu uma batida tímida na porta, como se a pessoa quem estivesse do outro lado tivesse hesitado ou a torcer que ninguém abrisse. Yanini sentiu o coração a pulsar com mais força, as pernas deixaram de a obedecer e começou a sentir a boca seca. Foi necessário conjurar uma certa força de vontade para poder chegar à porta e abri-la.

Na porta, ainda entreaberta, apareceu a silhueta de um homem. Yanini conhecia-o muito bem.

– Como vês, aqui estou – disse o homem, com a voz firme de quem disfarça um nervosismo.

– Em nenhum momento duvidei que virias – respondeu Yanini no mesmo tom.

Convidou-lhe a entrar. Houve uma tentativa de abraço e apertos de mãos falhados. O homem entrou e Yanini seguiu-o. Ao chegarem na sala, sob a luz rósea a silhueta ganhou vida. Kiese. Olharam-se constrangidos, mas a luz, por não ser tão nítida, conseguia disfarçar o nervosismo de ambos.

Kiese sentou-se sem esperar pela cortesia do convite de Yanini. Não o fez por petulância, mas porque sentia-se exausto e queria um lugar para descansar a alma. Yanini notou a exaustão de Kiese e, por isso, desculpou-o. Batia o pé com uma frequência ritmada, tinha os olhos vermelhos e esquivos. Ela conhecia aquele olhar.

– Este teu ventilador continua a não refrescar mesmo nada! – afirmou Kiese, na tentativa de derreter o gelo.

– Eh! Custou-me 14.000 kwanzas, lembras? Não posso joga-lo fora, tenho de dar uso até estragar – respondeu Yanini, com a voz neutra.

Naquele instante os dois tinham noção de que mais cedo ou mais tarde aquele encontro tinha de acontecer. O mundo parece grande demais, mas é uma ervilha. Podemos rodar, mas é uma volta de 360 graus. Aquele momento estava fadado. Yanini reparou nas roupas de Kiese, continuava o mesmo despreocupado, no entanto sempre organizado. Lembrou que era exactamente este um dos motivos que a fez apaixonar-se: Kiese era demasiado simples, contudo, demasiado metódico e organizado. Ela gostava, porque ela era o extremo oposto, tinha sempre uma novidade no cabelo, na roupa. Ele dizia que ela devia criar uma banda de rock por ser excessivamente alternativa. Os opostos se atraem talvez por isso deu no que deu.