Diálogo com o Presidente

Porra pá, a vida transforma-se teimosamente num concreto absurdo, a idade e o tempo em loucas e desgovernadas confusões quando as dibinzas nos perseguem surpreendentemente, desde cedo até tarde.

Sentia-me húmido, era a chuva. O espertalhão do relógio contava as horas num compasso binário insistente e constante, eram 23 horas. Caíam pingos, pingos e pingos. A equação resolvera-se por si, um caso que não sabia definir se era de álgebra, trigonometria ou de química, mas a verdade mesmo é que as operações de soma e multiplicação ocorriam e os resultados eram desanimadores: as chapas de zinco voavam e barulhavam numa espécie de conspiração contra mim. Alcançavam-me infinitos pingos na cama. Dormir, só já de um lado, e mais, o infernal calor tirava-me a paz, o sucego e eles todos juntos quebravam a minha profunda e íntima relação que desenvolvi desde cedo com o sono. Dirigi-me à cozinha para pedir ajuda às panelas e banheiras. Estas não me desampararam e intervieram numa acção solidária exitosa. Desta forma, vimos o problema resolvido, embora tivéssemos dormido semelhantes aos reclusos da CCL, à catana. Dormimos um sono com sonhos de terror de uma chuva que inundou o Zengá.

Liguei a um número qualquer para pedir apoio e, por azar do destino, era eu na linha com o presidente, o pai João. Eu, todo atrapique, disse-lhe que precisava interromper as férias para fazer algo extremamente importante e urgente, resolver os problemas do povo. Ele sorriu e eu também. Ripostou dizendo:

– O que se passa de concreto? Resolver os problemas do povo é o que faço diariamente.

– Oiça-me, por favor, senhor presidente, eu tenho um sonho, um sonho diferente do Martin Luther King – Respondi desprovido de qualquer medo.
Continuei discursando:

– Excelência, uma vez que parte dos munícipios do Cazenga e Sambizanga e outros muitos da Kianda envergonham-nos a todos pelos excessivos becos e as condições precárias de habitabilidade que em nada nos alegra, que tal se o presidente ordenasse que transformemos tais municípios em cemitérios? Excelência sabe que morremos à toa em Angola, né? E então, pai João?

Em seguida, o presidente sorriu e disse-me: isso é marimbondagem, filho!