«Diário De Um Professor (A) Normal» de Edy Lobo Entre o Literário e o Para-Literário

As primeiras palavras serão, naturalmente, de agradecimentos ao Edy Lobo por nos ter confiado a tarefa de apresentar o seu primeiro livro. Permitam-nos abrir aqui um parenteses e aproveitar do ensejo para felicitar o autor por estar a colocar no mercado um livro que será indubitavelmente importante para a sociedade e especialmente para a comunidade acadêmica.

Edy Lobo reúne, em «Diário de um professor (a) normal», uma vintena de crónicas que se situam entre o literário, o jornalístico e o dissertativo, impregnadas do seu saber multifacetado que se consubstancia no conhecimento de áreas como jornalismo, literatura, didática e investigação científica. Reconhecemos valor em cada texto desse livro, no entanto incidir-nos-emos apenas em três textos em razão das exigências cronológicas da apresentação de um livro.

O título «Diário de um professor (a) normal», por inerência da expressão «(a) normal», sugere uma dupla leitura por via da separação mórfica do prefixo «a»  do seu radical«normal», encerra um propósito metatextual, configurando-se, na verdade, como uma crítica social contra aquilo que é padronizado como «normal» nas sociedades actuais. Facto que pode ser comprovado com o texto «É o meu cabelo, não é o meu cérebro», no qual vai questionar a aparência como pressuposto de credibilidade intelectual e analisar minuciosamente a variabilidade do conceito de «normal» e «anormal» ao longo da história da humanidade. Lobo, com a palavra«(a) normal», nas condições filosófico-gramaticais já referidas, quer sugerir que o «anormal» pode ser, na verdade, o correcto.

 No âmbito da academia, temos, por exemplo,professores que, por manterem uma postura arrogante, não conseguem desenvolver empatia com os discentes, constituindo-se assim como um entrave para o sucesso do processo de ensino e aprendizagem. Estes são tidos, nos mais variados espaços sociais, como os «normais» por aparentemente se apresentarem com uma postura tida como séria à luz das convecções sociais. O «anormal» nem sempre configura uma patologia. Pode ser apenas uma via encontrada para se alcançar determinado objectivo. O «anormal» aqui é aquilo que é diferente da norma, o incomum, o estranho, o singular, o invulgar, o insólito, o extraordinário, etc. Portanto, o «a» entre parênteses diz-nos que o que chamamos de «anormal», por vezes, nem sempre se refere a um estado psíquico, mas a um padrão que a sociedade impõe e que pode e deve ser questionado.

O presente livro de Edy Lobo é um misto de coisas. Na capa, vê-se-lhe estampada o lexema «diário» – que consiste no registro de acontecimentos, sensações e reflexões do quotidiano público e oculto –, no entanto, nele, poder-se-á vislumbrar «memórias» (descrição do relacionamento do autor com pessoas de sua época, apresentando quadros da vida social num tempo e num espaço determinados) e «confissões» (o eu do autor está voltado para a sondagem da sua consciência, revelando-nos angústias e perplexidades) articulados por via de encandeamentos que conferem aos textos uma dimensão rigidamente híbrida.

O diário, as memórias e as confissões são subgéneros do género Biográfico. Portanto, vale recordar que a autobiografia só pertence ao domínio da literatura quando encerra uma dimensão ficcional que se concretiza por via do extravasamento doeu e pela recorrência à linguagem poética. Tais atitudes (extravasamento do eu e recorrência à linguagem poética) sucedem, ainda que com alguma oscilação, em muitos dos textos que podem ser encontrados neste livro. Portanto, importa afirmar que nem tudo aqui é literário. Os autores tremem quando ouvem isso. Por vezes, sem necessidade. O que não é literário não significa que não tenha valor. O primeiro texto dessa colectânea, por exemplo, é um texto argumentativo com pretensões literárias e foi muito bem construído do nosso ponto vista, na medida em que há um rigoroso cumprimento das normas estruturais que compõem essa tipologia textual. Poder-se-lhe-ia também chamar de Crónica dissertativa. O referido texto traz um título que tem o condão de ser reivindicativo: «É o meu cabelo; não é o meu cérebro». Começa com uma narração na qual se pode vislumbrar um estudante que foi colocado fora do «convívio académico com os outros colegas por alegadamente ter violado uma regra institucional» (pág. 19). O rapaz tinha o cabelo crescido além do permitido e, por isso, ficou privado de assistir às aulas, facto que o deixava tão indignado ao ponto de querer chamar pela sua mãe, a fim de acudir uma situação de injustiça. O texto prossegue de maneira dissertativa não tão longe do ambiente literário artístico e convoca o leitor a reflectir em torno das convenções que não são mais do que meras imposições de um grupo social que se julga ser detentor de uma moral à qual os restantes se devem sujeitar. Neste que também pode ser um texto de reflexão filosófica,o professor Edy Lobo propõe axiomas (Quem não sabe quem é, dificilmente se fará respeitar por via da preservação dos seus hábitos e costumes pág. 20); aborda questões pontuais como a globalização e aculturação, apresentando-as como a justificação da grande diversidade de estilos existentes em termos de apresentação; coloca perguntas de retóricas que nos convidam a reflectir,denuncia a rigidez da escola e de outras instituições sociais que vergam pelo mesmo caminho, colocando embaraços à liberdade da pessoa humana, amarrando-anum conjunto de regras que a levam à infelicidade. Lobo procura demonstrar também como as normas são meras convenções sociais e variam de época para época. Tal é o caso da barba, bigode e do cabelo que, segundo o autor, em alguns períodos da história do desenvolvimento humano, eram sinónimos de sabedoria, virilidade e poder em algumas sociedades (págs. 21 e 22, a partir do último parágrafo). Como solução, Lobo propõe que tais proibições devem ser punidas e encaradas como «abuso e violação dos direitos de liberdade e de cidadania» (pág. 22, segundo parágrafo). Ainda nesse texto, Lobo meticulosamente questiona a atitude feminista que encara um simples acto de elogio como uma tentativa de conquista, para, logo de seguida, como que a acalmar os ânimos, elogiar a luta do movimento feminista que visa a resgatar a verdadeira imagem da mulher africana distante dos cabelos artificiais e de todos os pressupostos de beleza assimilados ao longo da colonização e no decurso das propagandas capitalistas que são passadas através das indústrias culturais do ocidente. Resumindo, Lobo quer fazer lembrar que a educação deve ser um veículo de preservação e transmissão das culturas e parece também querer atribuir a culpa pelo conservadorismo das nossas instituições a terceiros, o que se constituiria, a nosso ver, como uma utopia, tal e qual a atitude feminista de resgate absoluto dos valores africanos.

Em «Educação com saúde» (pág. 23), Lobo faz uma introspecção e analisa o comportamento social da sociedade luandense. O resultado foi o esperado: uma sociedade com várias normas, mas embrutecida. «Mas existem pessoas que conduzem em Luanda e nunca mandaram, alto e em bom som, um porra?» Questiona-se o inquiridor,deixando-nos alguns conselhos sobre a necessidade de as pessoas serem educadas e manterem a calma diante de situações adversas.

Para os amantes da crónica literária, dentre os 20 textos reunidos no livro «Diário De Um Professor (A) Normal», «O meu pacote de batata frita chamado Angola» (pág.25) consta, sem margens para dúvidas, do cartão de visitas dessa colectânea de textos. Nessa crónica, o também poeta Edy Lobo exibe-se com uma linguagem ora elevada ora corrente, com rasgos estilísticos que, por turnos, com a força da descrição, vão construindo belas paisagens líricas. Trata-se de uma crónica que traz várias mensagens nas entrelinhas, servindo-se da metáfora da «bata frita chips» que, apesar da crise económica, é importada a preço de ouro e, comparando-a com a sua Angola, é cobiçada por estrangeiros. A metáfora torna-se explícita fundamentalmente quando o professor, depois de se ter negado a partilhar as batatas com os seus alunos, permite a uma estudante que aparentava estar esfomeada colocar as mãos no pacote. A menina levou uma parte considerável das batatas e quase nada restou no pacote do professor. A sua Angola tinha sido devastada pela menina que, de seguida, correu para dividir o que conseguira com os seus colegas. A menina simboliza os estrangeiros oportunistas que vêm ao país com a única missão de enriquecer e voltar para as suas terras e partilharem tudo que conseguiram com os seus parentes.

Este exercício não visa a abordar todos os textos deste livro. E ainda bem que assim o é. Assim,o estimado leitor terá a oportunidade de construir o seu pensamento crítico sem ser condicionado pela nossa leitura. Mas, para terminar, gostaríamos de levantar algumas perguntas:

Será Edy Lobo um moralista sem moral?! Como tem sido a sua interacção com outros transeuntes das estradas de Luanda? Nunca mandou um porra? A crítica gostaria de saber como o Professor Nuno se tem posicionado diante do conservadorismo das nossas instituições escolares. Que tipo de professor será?