DIMENSÃO AFRICANA DA IIIª TRIENAL DE LUANDA

África é, para muitos, o ponto central da cultura. Há quem afirme que foi aqui onde nasceu a arte sob todas as formas, desde à escrita, pintura, tecelagem, etc. com características próprias. Seja como for, a arte sempre esteve enraizada nos africanos, desde muito antes dos descobrimentos e dos conflitos. E é a partir da faculdade e capacidade de indagação que o africano se afirmou, sempre.

O presente texto é uma análise da dimensão africana da IIIª Trienal de Luanda, que acontece de Novembro 2015 até Novembro de 2016, sob o lema: da Utopia à Realidade. Organizado pela fundação Sindika Dokolo.

A questão da teoria de arte contemporânea emerge em todos os continentes. E o continente africano não é excepção. Para efeito, é preciso se traçar métodos para sair do então paradigma, que separa arte superior e inferior. Em muitos casos, limitando-as a uma determinada área geográfica. É preciso que se crie um novo paradigma.

Sendo uma variante da cultura, a arte define os traços fundamentais da identidade de um povo. A arte “é uma postura filosófica”, como diz Fernando Alvim, curador da Trienal.

 

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A arte aparece, inicialmente, como instrumento de memória. Usada pelo homem para sinalizar acontecimentos. Exemplo: as pinturas rupestres. Com o progresso científico, a arte passa a ser uma ciência. Exemplo: o estudo da Arte contemporânea.

Mas o que é cultura? E como se revela? É uma palavra camaleónica, geradora de vários conceitos. A nós interessa defini-la como sendo toda e qualquer manifestação artística, politica, económica, de um determinado povo ou indivíduo. Modo de pensar ou agir. É um dos três subsistemas artificiais (com a Politica e a Economia), concretos de toda a sociedade humana”. (BUNGE, 2002).

A cultura revela-se nos gestos, nos diversos modos de arte, no vestuário, etc. Há cultura onde existe povo.

Durante longo período, pesquisadores vêm a estudar a etnografia africana. Muitos rios de tintas têm vertido. Não é o nosso objectivo. Nosso propósito, já dissemos, é analisar a Trienal de Luanda. Mas será possível falar dela sem nos referir ao movimento cultural que ela desenvolve? Pensamos que não.

Em 1516, Thomas More, escreveu um romance filosófico, intitulado “Utopia”. A “Utopia” significava um lugar que só existe na imaginação. Thomas More idealiza uma sociedade onde seus habitantes eram todos iguais. Onde a arte e a leitura trariam a paz. Neste caso, a sociedade organizada não passava de uma utopia para o autor, comparada com a realidade que se vivia. As sociedades vivem mergulhadas em tensões conflituosas. Não há paz.

É exactamente neste contexto que se compreenderá a IIIª Trienal de Luanda, nesta frase “DO COLONIALISMO AO FIM DO APARTHEID”.

O apartheid foi instituído em 1948. Um movimento segregação racial da África do Sul, com incidências negativas para todos os países africanos. Durante este período, brancos e negros não podiam coexistir no mesmo espaço. O regime do apartheid procura criar bases, mudando o paradigma da Sociedade. Como diz Andrew (1986), “o regime do apartheid procura acentuar, cimentar e perpetuar (…), implantando o sistema de bantustões” (p. 98)

Comparado ao Apartheid está o colonialismo, ou seja, a semelhança está na forma como o colono agia, “santamente”, renegando tudo quanto pertencia ao colonizado. Tudo em nome de uma “nobre” civilização.

Para “europeizar” o africano, fez-se um deles. Para melhor dominar e acabar com tudo quanto tinha de original. Fazendo-o agir, pensar, olhar como um “europeu às avessas”, verdadeiras marionetes.

A “europeização” fez com que se criasse divisões. Por um lado, tínhamos os africanos assimilados, aculturados que rejeitavam a ferro-e-fogo “voltar a África”. Acreditavam que a mesma não tinha “passado nem futuro”.  Logrados com está herança cultural, os nossos irmãos passaram a renegar a sua identidade, como se tratasse do Diabo. Outro grupo era daqueles africanos que, embora assimilados, quiseram regressar a África. Esses paladinos do seu próprio futuro procuravam “redescobrir” as suas terras, redescobrindo a sua própria identidade. Usaram meios como a literatura, a música e outras manifestações artísticas.

Podemos dizer que desde o período colonial até o fim do apartheid, em 1994, houve uma preocupação de criar-se um movimento de vanguarda capaz de expor o drama social. E resgatar, por meio da arte, os valores humanos e legítimos da cultura e da personalidade africana.

O movimento pan-africanista de Dubois, dá lugar ao pan-africanismo que, nos anos cinquenta, luta contra o colonialismo para conseguir implementar as independências de alguns países africanos. Ele criou raízes e se disseminou por toda a África através do ideal de unidade africana.

Ao ser uma Trienal em que o “epicentro do sistema” é o Artista, segundo Fernando Alvim, torna-se também um evento com veio de transformação dos valores artísticos. É o artista, para além de simples obreiro do artefacto de arte. É tempo de revalorizar os artistas “remetidos a um tipo de indivíduos (…)  [sem] capacidades (…) de exprimir (…)” a sua arte. Os artistas são criadores da memória colectiva. Capazes de criar mundos. Um mundo real nos é acessível apenas pela arte.

A originalidade artística, a valorização do ethos, a coerência identitária são valores legítimos que qualquer artista africano deve adoptar. Sob pena de cair na “despersonalização”.

É ainda uma trienal que redefine a ideia de cultura, reafirmando princípios africanos. Feitas pelos próprios africanos. Sindika Dokolo, patrono do projecto, que leva o seu nome, afirma, em entrevista, que nós, africanos, devemos “redescobrir e revalorizar” a nossa cultura, mas “a luz dos nossos princípios e padrões”.

A cultura angolana, segundo o etnomusicólogo Macedo (2006), citando Agostinho Neto, diz que “[…] Desenvolver a cultura não significa submetê-la a outras” (p.10). A cultura africana é universal, e podemos ver os povos da América latina reivindicar e defender a sua herança Cultural africana.

Macedo (2006) acrescenta: “as aculturações resultantes do contacto cultural com os demais povos não devem resultar em perda da personalidade do angolano no contexto dos seus valores antropológicos materiais e espirituais”, (p. 10).

“Luanda torna-se autónoma”. É o que diz Sindika Dokolo. “A arte e a estética angolanas são concebidas a partir de luanda”.

Augura-se, com a mesma actividade, que Luanda seja a “capital da cultura e da arte”, embora seja uma “questão política” (acrescenta Sindika Dokolo).

A IIIª trienal de Luanda responde a várias perguntas sobre a africanidade. Sobretudo a pergunta do presidente Abdoulaye Wade, no III Festival Mundial das Artes negras, realizado no Senegal, Dakar, 2010. Quando perguntou: “O que a África quer transmitir ao mundo?”.

Jomo Fortunato escreveu nos seguintes termos referindo-se a este magnificente projecto:

“Partidário de uma leitura do fenómeno artístico e de gestão cultural suportada num permanente questionamento, a Fundação Sindika Dokolo persegue um método de intervenção, no domínio das artes, que articula as disciplinas tradicionais, sempre passíveis de novas leituras, com ferramentas de análise, e formas de abordagem teóricas, de feição multidisciplinar e multimédia”.( (Dokolo 2006/2007))

Não foi esse o objectivo dos nossos antes? Quando quiserem “descobrir” a África? Não é este o nosso desejo hoje? Habitar numa África sem “tensões nem estrondo de balas”? Sem segregações, estigmas e que vivamos de forma harmoniosa? Onde cada um afirma com padrões culturais africanos? A arte é e sempre será a medianeira nos conflitos. Pois, a arte é a Mãe da paz.

Se é verdade que o homem é O QUE É, com base a sua cultura, se é verdade que a cultura fortalece, então, é verdade que o homem deve agir no interior do universal, sem renunciar a sua individualidade. Assim, o homem deve livrar-se das grilhetas da utopia e partir para acção, algurando viver a realidade. É a partir da acção que o homem se torna verdadeiramente consciente das suas capacidades, porque só aqui a arte se pensa, ganha forma e sentido. Vive-se a realidade.

BUNGE, Mário. (2006). Dicionário de Filosofia, São Paulo, Perspectiva.

MACEDO, Jorge. (2006). A Dimensão Africana da Cultura Angolana. Luanda: INALD.

ANDREW, Igor. (1986). Karl Marx, o marxismo e a África. Moscovo, Edições da Agencia de Imprensa Nóvosti.

DOKOLO, Fundação Sindika. Trienal de Luanda. 2006/2007. http://fsindikadokolo.org/projectos/i-trienal-de-luanda.html (acedido em 16 de Abril de 2016).