Discurso de apresentação da obra «Ventre negro» de João Tala

Reiteradas saudações.

Desde já, agradeço às Edições Handyman por me terem concedido a honrosa responsabilidade de apresentar a mais recente obra literária de João Tala. Mestre, como é respeitosamente chamado por muitos aqui presentes, Tala se inscreve na restrita lista dos escritores angolanos (já conceituados) mais acessíveis e mais permissíveis, prova disto é este seu lançamento despadronizado e também a relação salutar que mantém com esta geração que o crítico literário João Fernando André ousou chamar de «Geração da Insana Idade». João Tala, este gigante imbondeiro com as raízes bem assentes no solo da Literatura Angolana, com a fecundação das Edições Handyman, acaba de expulsar do seu vasto ventre literário mais uma das suas belas crias ou criações à qual deu nome de «Ventre Negro».

«Ventre Negro» é uma obra prosaica em formato digital que compreende 7 narrativas que nos encaminham até à alma de um Camama agitado, engaiolado no negro ventre que ainda conserva os ritmados sons do ngoma, da marimba, da dikanza e os deslizantes passos da masemba. Estas narrativas, do ponto de vista da taxonomia literária, podem assumir-se como cronicontos na medida em que encerram um certo hibridismo que oscila entre o conto e a crónica narrativa. Trata-se de uma prosa realista muito bem conseguida com marcas do surrealismo e do realismo animista.

Esta obra conta com um prefácio assinado Por Nguimba Ngola, cujo título é «A tradicional arte do ngoma em Ventre Negro». O título «Ventre Negro» provém, certamente, da primeira narrativa, que possui o mesmo título e na qual podemos identificar o destaque propositado que se dá à expressão «ventre negro», afigurada na página 20. Lê-se:                    

Tinha a ilusão de que batia na avassaladora bunda dela ou que as partes dela caíam aos meus pés; e o lírico espasmo da dança dela refazia-me no tambor – tamborilava como
se renascesse – todos tinham parado sob o enorme ventre negro que a noite
mais escura do mundo descera sobre e a volta de nós. Com o olhar mudo os
homens aplaudiam.

A palavra negro pode nos remeter para a ideia de obscuridade, escuridão ou noturnidade, ao passo que ventre pode estar fortemente associado à parte interior de alguma ou ainda à figura materno-feminina. Tudo isto, articulado simbolicamente à imagem da capa, pode nos conduzir à reverência quase que mística da natureza feminina e aos seus desígnios sensuais ou voluptuosos.

A primeira narrativa, Ventre Negro, apresenta-nos um Afonso sonhado, este tocador de ngoma, que derretido pela sensualidade e habilidade que Rita de Deus imprimia na sua dança, explorava voraz e utopicamente o batuque como dela se tratasse. Vejamos o seguinte excerto, afigurado na página 21:

Eu ia-me como num voo sensacional, cheio de aves! O meu ngoma
soltava pássaros. Eram aves escuras cheias de gemidos mas, contudo, eram
vozes de Rita de Deus e eu parei de mexer com ela através dos gritos do
bumbo, percutia com mais suavidade agora, já Rita relaxava. Disse-me:
– És o melhor batukeiro.

A segunda narrativa, Perdidamente Catarina, traz uma Catarina Cativa que divide seu coração entre Pedro Malanjino e Kambenda Lima. O primeiro é este excelente batuqueiro dos jovens do Prenda, o tocador dos sintomas que a Caty sente. O segundo é o seu marido garimpeiro nas minas das Lundas, que a abandou e queimou a casa depois de ter encontrado um retrato do Pedro Malanjino. Em Batuque Dundundo, terceira narrativa, vê-se uma Bela Mateke caída nas noites ao ritmo do batuque do velho Muazunga, fugindo das suas insónias, provocadas pela revisitação das mortes que fez na guerrilha. A quarta narrativa, O Verão da Negrita, apresenta uma Rita Negrita a reabitar o palácio de sonhos de Afonso, mais vibrante como nunca, exibindo uma juventude imprópria da idade que carregava no corpo. Vejamos o seguinte excerto, afigurado na página 46:

E voltou noutra noite, assim que lhe sonhei: tudo me mexe mulher;
tenho a boca entregue às mãos e o meu bumbo, eu sinto, entregue ao teu
corpo. Por favor, vem de novo Rita Negrita que meu sonho parou em ti.

Em De lonjuras para o Camama, quinta narrativa, o batuqueiro que se exibe com a magia do batuque dundundo que aprendeu do velho kioko recebe, em sua casa, primos que trazem Malanje e suas encantadoras histórias na ponta da língua. Há aqui um perfeito encaixe que dá vida ao lendário Mbaxi, o batuqueiro kambuta que levou o tambor para o mais alto cume. Em Princesa Rita, sexta narrativa, o batuqueiro Afonso retempera as memórias da batucada com o aparecimento da Rita, a princesa dos Kiezos, numa farra bem aquecida, boicotada pelos fiscais. Acontece aqui um outro encaixe que dá voz à história dos Kiezos, conjunto musical formado nos anos 60 no bairro Marçal, em Luanda. Ritita Sabia Voar, sétima e última narrativa, traz uma Ritita voadora que vai parar à prisão por causa de um kizango com os fiscais, após estes terem interrompido uma verdadeira farra, que inicialmente eram simples ensaios para o carnaval, onde ela se exibia com uma dança que enlouquecia o primo do batuqueiro Afonso. Estas narrativas são independentes umas das outras, mas mantêm entre si um diálogo que se estabelece a nível das acções, das personagens e dos temas.

João Tala aquece o palco da nossa imaginação com o batuque dundundo do velho kioko Muazunga, com os explosivos tambores do lendário Mbaxi, com o repertório musical dos Jovens do Prenda, dos Kiezos, dos Tunjila Twajokota e com o gingar das dançarinas Rita de Deus, Rita, a princesa dos Kiezos, Ritita voadora, e outras mulheres com o corpo na dança ou com a dança no corpo, tanto faz. Com o seu kimbundu a engrossar o molho de um português que lhe é bem característico, Tala traz um misto de narrativas que acendem o lume da valorização da música e da dança populares de Angola. É também uma espécie de homenagem aos musseques, às artes aqui desenvolvidas e aos seus cultores. Este Camama aqui cheio de vibrações é o lugar que acreditamos ter sido eleito para ilustrar a realidade social dos subúrbios, estes ventres onde a arte nasce e reina, porém esquecidos e relegados em último plano na lista das vontades e prioridades políticas.

Camama é o espaço físico onde as personagens se movimentam e dão dinamismo às acções. Estas últimas não obedecem a uma ordem lógico-linear, ficando à mercê do vagueio dos narradores. As narrações são bastante complexas e despadronizadas. Por exemplo, os narradores, que são geralmente autodiegéticos, tendem a mudar para homodiegéticos, passando o protagonismo para outras personagens; possuem uma focalização omnisciente, porém intercalam os discursos narrativos entre a primeira e terceira pessoas. As personagens apresentam-se em número reduzido, mas possuem uma mobilidade extraordinária. Importa alertar que as falas das personagens, em alguns casos, não se encontram identificadas por elementos já padronizados, como o travessão, aspas ou letras em itálico, o que exige do público leitor um certo craquejo no momento da leitura e/ou interpretação textual a fim de estabelecer uma distinção entre o discurso narrativo e o discurso personático. Os primeiros parágrafos das páginas 14 e 35 desta obra confirmam este facto.

Entre sonhos e batucadas, farras e kizangos, aventuras do Camama e da terra mãe, Malanje, João Tala surge com um canhão cheio de metáforas e sarcasmos, disparando uma rajada de temas como adultério, corrupção, poluição sonora, alcoolismo, violência, difamação, preconceito, infidelidade, prostituição, abuso de poder, e tantos outros. Chegado a este ponto, nada me resta senão parabenizar o mestre João Tala e as Edições Handyman pela presente publicação. Auguro, portanto, deleitantes leituras a todos. Muito obrigado.