António Jacinto, poeta angolano, um dos mais representativos da sua época, com a sua poesia de protesto, apalpou as pontas do sol num dia 28 de um mês chamado Setembro, num ano memorável de 1924, nas terras da Kianda. Transferiu-se para o reino da eternidade no dia 23 de Junho de 1991, nas terras do Alentejo. Já foi Ministro da Educação e Cultura, isto após a independência de Angola. Membro Co-Fundador da União dos Escritores Angolanos. Em sua homenagem, foi instituído o prémio, que acontece anualmente, António jacinto.
Com o presente diálogo, pretende-se, numa viagem aleatória – e o funcionamento aleatório não é opaco –, apreender o dito e não-dito em António Jacinto. A pretensão não passará por delimitar as fronteiras entre a linguagem conotativa e denotativa, todavia encontrar as dicotomias entre o dito e o não dito por intermédio de leituras polissémicas. Ater-se-emos no dito como a ideia principal e o não-dito como o reforço implícito, até certo ponto, oposto da ideia principal. Contudo, a desenvoltura do nosso diálogo poderá, em alguns parágrafos, assumir contornos imprevisíveis.
A linguagem do sujeito poético é provida de argúcia e desejo anafórico, evidenciada pelo uso constante da forma verbal do verbo «querer»: “eu queria escrever-te uma carta amor/ (…) eu queria escrever-te uma carta amor/”. A ausência do recalque – o contexto não o inibiu – dá prioridade à descoberta ilusória. Falamos em descoberta ilusória como hipótese.
O sujeito poético singulariza a sua realidade, através do pronome pessoal «eu». Porém, esta singularidade no decurso do poema representa a pluralidade do contexto: “(…) outra ela não tivesse merecimento…”.
Retomando à descoberta ilusória, recriou o seu estado lírico em oposição à sua condição social. Sua pretensão não passaria para a praticabilidade muito por causa do analfabetismo real que encerra o corpo do poema e agudiza a sua intencionalidade: “(…) que tu não sabes ler/ (…) não sei escrever também”.
O poema Carta Dum Contratado advém de um contexto cinzento da história de Angola. Porém, numa sinopse ao sujeito poético, pela sua singularidade discursiva, pela sua estética e expressividade, denota ser alguém emocionalmente estável: em momento algum faz referência à lágrima, à morte, ao álcool e de uma cosmovisão optimista sobre o mundo tangível. Vale recorrer à inserção do poema no seu contexto. Assim sendo, o sujeito poético é o reflexo da sua capacidade de absolvição das mais e diferentes questões do seu processo sócio-histórico coercivo ou arbitrário.
Soares (2007, p. 249) refere-se ao contexto como sendo «tudo o que rodeia um dado texto (…)». Nesta ordem de ideia, não nos desviaremos do curso normal do postulado em epígrafe, talvez alargar o conteúdo lexical e semântico. Ora bem, para o conceito de contexto, entendemo-lo como uma dialéctica temporal, partindo-se do pressuposto da dinâmica existencial, em que determinados contextos evaporam dando lugares a outros. O mesmo envolve ruptura, a não-aceitação dos valores estéticos, culturais e políticos vigentes e envolve-se numa rotina de choque entre o estático e o móvel.
Para o ensaísta angolano, Jorge Macedo (2010, p. 33): «a poética angolana ramifica-se em sentimentalista e simbolista». A referida ramificação deve-se aos factores sociopolíticos, ao patriotismo, ao nacionalismo, à denúncia à opressão colonial e à negação constante da assimilação. Tudo isso oxigena a produção poética dos escritores angolanos.
Há um binómio conceptual, em volta da poética: por um lado, é entendida como um conjunto de normas e preceitos que ensinam e orientam o poeta na criação das suas obras, por outro, é concebida como conhecimento teórico e sistemático sobre a poesia. Parte-se da produção poética, para a teorização literária. A palavra “contratado”, segundo o Dicionário de língua portuguesa (2012, p. 417), é «Adj. Diz daquele que trabalha sob contrato». Numa leitura reconstrutiva, atemo-nos à palavra em negrito, contratado, o que subjaz uma mescla de repúdias à conjuntura do contexto.
Ainda sobre o sujeito poético, este é contra a colonização, contra o analfabetismo real, contra o retrocesso, contra o ceptismo lírico. Aliás, é contundente realçar que a forma verbal do verbo «querer» expõe também a intimidade de forma metafórica: “eu queria (…) /uma carta de confidências íntimas (…)”. A Carta Dum Contratado é um texto convidativo ao nível dos recursos expressivos. Por exemplo, assiste-se a coabitação de metáforas em um só verso: «dos teus lábios vermelhos como tacula/ dos teus cabelos negros como dilôa». Na primeira instância, temos uma analogia, comparação de coisas diferentes que apresentam semelhanças, segundo, temos a comparação como tal com a partícula “como”. Há também um certo dualismo poético, entre o inteligível e o sensível, em Carta Dum Contratado: «(…) /uma carta que dissesse deste anseio de te ver/ deste receio de te perder/». O que torna dualista, o verso referenciado, são as palavras “anseio e receio”. Por dualismo, segundo a corrente filosófica, doutrina que admite dois elementos irredutíveis e independentes. Diz-nos, Fernando Pessoa, na obra O Amor É Sempre Agora, publicado pela UEA, (2007, p. 392) que «todas as cartas de amor são ridículas/ Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas». Por seu turno, Alice Amaro (2007, p. 112) refere-se à carta como sendo «um texto escrito, cuja linguagem e estrutura dependem da intenção do remetente». Relativamente ao dito, veremos um certo grau de cumplicidade entre o sujeito poético e a destinatária: “(…) e dos teus carinhos que maiores não encontrei por aí”. Outrossim, no mesmo verso, o não-dito. De frisar que o não-dito é o que se diz sem ser dito, por exemplo, se encontrasse ainda teria manifestado a sua intenção epístola? Porém, implicitamente, diz que teve outras raparigas na roça, e nesta implicatura reconhece que nenhuma outra o fez esquecer a destinatária que deixara em sua aldeia.
Outro não dito está em “(…) uma carta que em todo Kilombo outra ela não tivesse merecimento”. Se por um lado, é demonstração clara do ego do sujeito poético, por outro, denúncia da desagregação familiar. Abre algumas acepções que denotam que a destinatária era bastante cobiçada. Outro diafragma dicotómico, entre o dito e não dito encontramos em “(…) que a lesses sem a frieza do esquecimento/ que a escondesses de papai Bombo/ que a sonegasse a mamãe Kieza”. Ficou descrito, subjectivamente, numa leitura conjuntural, tratar-se de uma família conservadora, em que o pai Bombo é o braço de ferro, e a mamãe Kieza, almofada amiga. Não se trata de estereotipar, apenas recepção estética.
No campo literário, a carta é um género epistolar. Na sua historiografia, inserem-se as cartas de Pêro Vaz de Caminha e as de Eça de Queiroz. O poeta diante da realidade ou reassume uma atitude pragmática ou recolhe-se num compartimento de perplexidade. Por isso, alerta-nos Ferreira (1975, p. 24) que «todo e qualquer acto individual se integra numa série estruturada e complexa de actos humanos dispersos no tempo e no espaço». Assim sendo, o dito e o não dito em Carta Dum Contratado decorrem num espaço temporal marcado pela colonização e a luta pela independência. Nesta singularidade, assiste-se também a presença de antroponímia, toponímia. Há impressões de recursos semânticos, concretamente a personificação: “(…) uma carta que os cajus e cafeeiros/ que as hienas e palancas/que jacarés e bagres pudessem entender/(…)os bichos e plantas compadecidos de nosso pungente sofrer(…)”. Realce para a solidariedade hipálage: “as palavras magoadas da minha carta”. Não se descartam as impressões da causalidade: “(…) que recordasse nossos dias na capopa / nossas noites perdidas no capim/ que recordasse a sombra que nos caía dos jambos/ o luar que se coava das palmeiras sem fim/ que recordasse a loucura da nossa paixão (…)”. Porém, Hume como referido em Figueiredo (2010, p. 21) conclui que “a causalidade não é mais que uma expectativa que possui sua origem em um sentimento gerado pelo hábito”. Está provido de causalidade, em função da presença da forma verbal do verbo «recordar».
Em forma de repto e não de conclusão, o dito compreende o estado consciente do sujeito poético, o não-dito, estado inconsciente. Por toda comunicação estar aberta às novas e outras reflexões, não terminamos, mas ficamos por aqui.
BIBLIOGRAFIA
AMARO, A. (2005). Resumo das matérias, actividade, exercício e soluções (2.ª Ed). Porto: Asas editores
FERREIRA, E. (1975). A Crítica Néo-Realista.
FIGUEIREDO, V. (2010). Kant e a Crítica Da Razão Pura (2ª Ed.). ZAHAR
MACEDO, J. (2010). Como ler e escrever Literatura. Luanda: INIC/Ministério da Cultura.
SOARES, F. (2007). Teoria da Literatura Criatividade e Estrutura. Luanda: Kilombelombe.
Prestígio Plural Editora & Porto Editora (2012). Dicionário de Língua Portuguesa. Porto: Autor.