Entre a violência simbólica (?) e uma estética subversiva – o kuduro

Trata-se dum olhar que, embora seja pessoal, está isento de todas as paixões ou aversões que se pode sentir como ouvinte de um estilo que vai resistindo às fusões e à hegemonia de estilos (Semba e Kizomba) praticados por cultores fortemente apoiados por um empresariado politizado. Não podemos negar que, mais do que um estilo nascido em Angola durante os anos 50 e 60, o «Semba» é um género musical que nos parece ter acompanhado, fundamentalmente, a história política do partido MPLA. Com efeito, é natural que se lhe dê mais aberturas. A «Kizomba» ocupou durante muito tempo as pistas de dança. Hoje, vai-se a uma festa de bairro, e o «Kuduro» ou o que é chamado de «Afro-house» – variante, segundo alguns (Pai Profeta e seus símiles); «Kuduro», retornando à origem, na visão daquele que é tido como o criador (Tony Amado) – domina as pistas. «Semba» e «Kizomba» resistem, mas andam mais confinados a «pedidos», «casamentos» e a cerimónias restritas, como aniversários, baptismo, etc.

Fruto do exercício racional que efetuámos para alcançar à origem do Kuduro, partiremos do método dialético para negar a ideia de uma eventual proveniência de zonas periféricas. Assim sendo, contrariamente ao que se lê em diversos documentos, possivelmente não terá começado no «gueto», na medida em que as discotecas e dancings, nas décadas de 80 e 90 do século passado, não eram tantos e estavam confinadas maioritariamente no castro urbano, estando algumas em zonas intermédias. Contudo, é indubitavelmente no gueto onde se transformou para hoje se apresentar com diferentes tonalidades.

Como tudo o que é novo, na sua fase embrionária, foi e ainda é – pelo menos, para alguns – um género musical estereotipado como «marginal». Tal preconceito advém de um inevitável olhar-de-cima. Em qualquer sociedade, dito em metáfora, a verdade é que o «centro», fruto das ilhas sociais criadas pelo poder político – violência simbólica –, sempre olhará a periferia com desconfiança. Entretanto, verdade seja dita, a prática não inocenta de todo os maiores cultores deste estilo. O «Kuduro» desenvolveu-se no «gueto» e pode-se dizer que seja consequência da guerra civil. Uma maneira de evasão – estética subversiva – que surgiu como que um milagre para livrar uma grande massa social de traumas que uma guerra pode causar e da simbólica agressividade com que o sistema trata as maiorias.

Pelo seu posicionamento geográfico, o município do Rangel teve grande peso para emancipação do estilo. Não só congregava um grande número de cultores como também grande parte dos principais estúdios musicais. Rangel era e é habitado por gente com alguma possibilidade. Mantendo fronteira com o centro e a periferia bem como pela sua proximidade geográfica é a partir desta circunscrição geográfica que o «Kuduro» se expandia.

Não é nossa pretensão escrever uma historiografia do «Kuduro» e julgamos que o título denuncia implicitamente o nosso desiderato. Trata-se de um estilo musical no qual superabundam diferentes mensagens. Contudo, grande parte das músicas que se transformam em verdadeiros hits trazem uma mensagem que, apesar de violenta e obscena, não deixa de ser subversiva. Em termos estéticos, o «Kuduro» é um estilo que impõe aos cultores alguma agilidade, e as composições obedecem a um encandeamento de frases que rimam emparelhadamente, não importando, em muitos casos, a sequência lógica das ideias objectivadas formalmente no papel e, subsequentemente, em registo auditivo. O importante é rimar. Deve-se referir também o peso do ego-criativo e as frequentes citações de gente próximas ou distantes, por razões de inimizades, maioritariamente, dos cultores do estilo que acarinham com mensagens ou agridem.

A elasticidade dos movimentos na dança, a agressividade imprimida pelos intérpretes bem como a violência discursiva – agora menos, fruto de alguma evolução em termos de idade e pensamento – denunciam alguma violência. Contudo, vamos ater-nos naqueles que revolucionaram ou produziram grandes hits.

Sem rodeios, Os Lambas, Bruno M, Puto Prata, Noite-dia, Os Xtrubantu, Puto Lilas, Magnésio dos Caixa Baixa, Rey Panda, Agre G, Yanilson Number One, dentre vários fizeram-nos dançar, e «Kuduro» é isto – dança – com grandes hits, e elegemo-los por serem aqueles que, esteticamente, no âmbito da sonoridade e estilo próprio, melhor realizaram o Kuduro cantado. Houve músicas de mensagens positivas, como a «Iniquidade» de Fofandó, «A felicidade» de Sebém dentre outras músicas. Entretanto, a métrica «mais fodida», encarnando a linguagem do estilo ou com mais estilo encontra-se nas vozes daqueles os quais já referimos.

Dos citados, alguns como Nagrelha, Noite-dia e Puto Lilas cantam numa prosa feita com frases extensas, o que lhes exige uma maior aceleração vocálica. Cultores como Bruno M, Magnésio, Agre G e Yanilson recorrem a uma sintaxe prosaica cuja métrica é mais curta, por tanto com menos aceleração no cantar e, quanto a nós, mais eufónica. Os artistas citados, na sua maioria, tiveram uma relação muito próxima com gangs e se reflectia nas suas composições em que, frequentemente, se atacavam entre si com mensagens agressivas. Mesmo a Noite-dia – é assim que preferimos assinar o seu nom – em «Kibeixa», coautoria de Puto Prata revelava uma brutalidade enorme, imperando com a voz numa mensagem até certo ponto pacífica, como no excerto «mana dança sô». Sabemos que esta partícula «sô», assim grafada, para se demarcar de «só», é usada com sentido de «favor», e a kudurista em questão fazia-a com uma agressividade como que a imperar. Entretanto, não deixam de ser estes, quanto a nós, os grandes artistas deste estilo cujas figuras paternas são Tony Amado e Man Sibas.

Se nos ativermos ao conceito de «violência simbólica» de Boudieu, segundo o qual – trata-se duma «violência que é cometida com a cumplicidade entre quem sofre e quem a pratica, sem que, frequentemente, os envolvidos tenham consciência do que estão sofrendo ou exercendo» (Luciano, 2005) – o Kuduro constituir-se-ia como um símbolo de subversão de gente que, inconscientemente, se colocou à margem do sistema no poder. Isto se observa, por exemplo, no registo audiovisual do grupo «De Fire/ De Faia ou Defaiú» em que se vê, no princípio, um Rei Panda a ditar as regras do jogo dizendo, por via duma tradução, que «agora o que conta é dinheiro e que todos falariam em calão», em clara reacção ao português.

A nação Kuduro é autónoma e resistirá. Vem o que vier, como diriam as «Palancas», ninguém matará o Kuduro. Vocês vão correr um por um, vocês vão cair um por um. Honras ao Kuduro.

Bibliografia

Miranda, Luciano (2005). Pierre Bourdieu e o campo da comunicação: por uma teoria da comunicação praxiológica. Porto Alegre.